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Pequena História da Pintura Abstrata - (0) - Pressupostos


Composição VIII
Tudo isso parte de um fato: os quadros do Kandinsky, que eu sempre vi dançarem diante de mim, arrancando uma alegria musical. Não é possível negar a vida daqueles quadros, como eu escrevi um dia desses. Isso é do que trata a estética: ela corre atrás do fato da beleza e tenta explicar de que ela é feita.

O marxismo se baseia numa fenomenologia da vida cotidiana, como o Lukács mostrou na Ontologia do Ser Social. E o problema tem a ver com ele. Porque os quadros abstratos continuam de pé, o Miró, o Paul Klee, o Mondrian. Não adianta o Lukács tachar os caras de formalistas e falar que o mundo se evapora. Então, tem que ser procurada uma resposta.

O estranho é que eu procuro essa resposta com as mesmas ferramentas que o Lukács deu pra gente. O aparato conceitual dele me parece muito mais apropriado para a literatura em que, afinal, as palavras se relacionam diretamente com os gêneros, do que para a pintura, com cara de mímese direta da realidade.

Mas, por outro lado, o formalismo vazio não serve pra muita coisa. É lamentável que o Mário Pedrosa tenha caído na gestalt e no formalismo na década de 1950, devendo à gente uma teoria realmente marxista da pintura abstrata. O que os frankfurtianos fizeram (também muito mais válido para a literatura e a música do que para a pintura) foi uma apologia da incomunicabilidade, um tipo de conteudismo de cabeça pra baixo.

Eu quero escrever uma história da pintura abstrata que mostre porque ela funciona, porque ela foi uma das grandes correntes do século XX, porque as obras ainda estão de pé.

Não quero fazer uma história da pintura moderna, só o abstracionismo me interessa aqui, a pintura figurativa teve grandes momentos na mesma época, até um renascimento parcial na década de 1980; não quero falar também das instalações, das formas de arte que derrubam as barreiras antigas, só vou mencionar elas como um dos resultados da dissolução e superação do abstracionismo.

E pra isso serve a estética lukacsiana: ela tenta explicar o significado social da arte, como ela serve de instrumento para a compreensão da realidade, o que existe nela que apela para o universal, e como esse conteúdo universal exige uma forma adequada a ele (ao contrário das estéticas formalistas que veem o universal nas criações formais).


Por que uma pintura abstrata funciona?

Aqui, mais uma vez, a contribuição do marxismo para a estética (nesse caso, principalmente do Della Volpe) foi mostrar que o efeito das obras de arte é objetivo, ou seja, não é uma simples questão de gosto.

E muitos fatos mostram que o subjetivismo do senso comum tá errado. Por exemplo: qual é a explicação de livros difíceis, por exemplo, O Processo, Crime e Castigo ou Dom Casmurro continuarem a ser lidos e produzirem até mesmo inspiração para novas obras, enquanto outros, que foram muito mais famosos na mesma época, foram completamente esquecidos? À primeira vista, isso pode parecer que acontece por influência da academia (e, muitas vezes, isso existe mesmo) mas, se fosse assim, como pessoas que ficaram totalmente esquecidas podem passar a ter um reconhecimento que nunca tiveram em vida, como a Emily Dickinson ou o Augusto dos Anjos? Ou, no caso da pintura, como o M. C. Escher pode ser um cara tão aclamado, mesmo sendo desprezado pela maioria dos críticos?

As Tentações de Santo Antão
A explicação dos teóricos marxistas da estética é a de que essas obras expressam a realidade social de onde vieram, e revelam as coisas de uma forma universal, conquistando a nossa empatia, porque as coisas pouco ou nada mudaram no mundo em que vivemos. Por exemplo, as alucinações infernais de Hieronymus Bosch, que renasceram para as pessoas que gostam de pintura durante o século XX, falam do estranhamento e desespero da época dele, tanto quanto da nossa época.

Mas aí é que está o problema: as obras mais importantes do abstracionismo estão aí até hoje, comunicam e, muito mais importante do que a simples popularidade, são a base de vários avanços nas artes plásticas. E até mesmo chegaram na vida cotidiana, como o desenho industrial, o videoclipes, a publicidade etc.

Não se trata de uma mera experimentação estética, que acabou sumindo no tempo, como tantas coisas que as vanguardas produziram. Então, não pode ser simplesmente tratada como um formalismo vazio. Mas isso nos leva a pensar: como será possível avaliar uma pintura que não representa a realidade?


A mímese na pintura abstrata

Bem, o maior erro que o Lukács comete nas poucas vezes em que menciona o abstracionismo é não entender que a mímese funciona diferente na pintura figurativa e na abstrata. E é disso que eu vou falar agora.

Além dos frankfurtianos, poucos marxistas se deram ao trabalho de compreender a pintura abstrata, quanto mais de defender. Uma exceção muito interessante é de um brasileiro, o Maurício Puls, que escreveu, em 1998, O Significado da Pintura Abstrata.

Ele coloca o problema da mímese mas, infelizmente, eu acho que ele faz isso de forma errada, pressupondo que a mímese de um quadro abstrato funciona da mesma forma que a de um figurativo, e que a diferença está em que as formas abstratas são uma metáfora da figuração. Para ele, o contraste entre a figura e o fundo numa obra abstrata representa o contraste entre o sujeito e o mundo (pior ainda, ele tem uma tese dogmática terrível de que a figura representa o indivíduo e o fundo, o mundo).

Eu acho, seguindo a concepção do próprio Kandinsky (em Ponto e Linha sobre o Plano), que a mudança da figuração para a abstração é uma mudança de mímese: o paralelo da pintura abstrata não é com a figurativa, e sim com a música.

Como o Lukács fala na Estética, a diferença entre a música e as outras artes é que, enquanto elas mimetizam diretamente a realidade para conseguir a empatia, a música mimetiza as reações humanas diante da realidade, a vida emocional dos seres humanos. Quando o Kandinsky faz a aproximação entre a pintura e a música, à parte as teorias sobre cinestesia, que dependem totalmente da visão mística espiritualista dele, o que ele está dizendo é que, nas obras abstratas, as cores, formas e linhas evocam diretamente as nossas emoções. Por isso que as melhores obras abstratas são tão vibrantes.

Não é um acaso que as primeiras obras abstratas foram chamadas pelo Kandinsky de Composições. Como ele fala, em Do Espiritual na Arte:

"As formas das tendências construtivas em pintura podem dividir-se em dois grupos principais: 1.º A composição simples, submetida a uma forma clara e simples, é denominada composição melódica. 2.º A composição complexa, na qual se combinam várias formas, as quais se submetem a uma principal pode, por seu lado, resultar de difícil localização e isolamento exterior. A base da composição recebe então uma sonoridade particular. É a composição denominada sinfônica".

Esse ponto de vista rompe completamente com aquela maldita visão do senso comum que olha para as pinturas abstratas e pergunta: "o que ela quer dizer?".

Além disso, a pintura abstrata é uma resposta (e produz) problemas formais específicos que, se não são os determinantes para o seu surgimento, como querem os formalistas, são reais e são incontornáveis quando se tenta expressar o novo conteúdo na pintura que, como veremos, nasce das novas condições materiais e sociais da decadência do capitalismo e dos seus efeitos na subjetividade.

É justamente isso que eu vou tentar mostrar nessa pequena história, nos passos mais importantes do desenvolvimento do abstracionismo.

O Mário Pedrosa fez uma síntese entre o aspecto social e o formal da arte abstrata, no seu artigo fundamental, Panorama da Pintura Moderna (1951), que mostra toda a problemática da passagem de uma forma de mímese para a outra:

"Na pintura clássica ou naturalista passada, a cor não tinha autonomia. Para W. H. Wright, no seu The Future of Painting, toda a pintura até Turner e Delacroix era uma espécie de branco e preto. A cor não desempenhava nenhuma parte orgânica na concepção pictórica clássica. Os meios de obter a solidez e a estrutura eram dados pela escala dos cinza. Em regra geral, a cor colocada como uma ideia complementar, em imitação da natureza, uma espécie de decoração, ou embelezamento, era fatalmente subordinada aos reclamos da representação naturalista e da reprodução do volume. Ao isolar-se o modelo pelo claro-escuro, o sombreamento, a fim de criar-se a verossimilhança com o objetivo, as leis cromáticas são negadas. O artista despe-se de sua experiência direta e pessoal da percepção cromática, e fatalmente se separa do mundo, substituindo a realidade fenomenológica palpitante por uma realidade comvencional aparente e rotineira. A grande descoberta foi, como explica Paul Renner (Ordnung und Harmonie der Farben), que existe uma arte das cores, e esta começa lá onde a essência secreta delas se pode desenvolver livremente. Cézanne teve a intuição genial dessa verificação científica."

Isso não significa que eu não veja valor nenhum na abordagem do Maurício Puls. Ao contrário, uma tese dele serve para localizar o abstracionismo dentro do longo período de decadência do capitalismo: a de que a abstração na arte corresponde à abstração real feita pelo capital, desnudada quando ele se apossa do mundo inteiro na época do imperialismo:

"Mas por quê o pintor rejeita a realidade? Essa ruptura estética entre o homem e o mundo se fundamenta na dissociação material entre eles. O homem não reproduz a realidade no quadro porque ele foi privado da realidade. (...) A alienação instaurada pelo capital constitui o fundamento social da pintura abstrata. Este gênero constitui um reflexo da alienação do homem sob o capital: a realidade vazia é o tema da pintura abstrata. O seu significado consiste em espelhar um homem oco num mundo vazio. (...) A pintura abstrata não espelha um objeto qualquer, mas um objeto que se dissolve. Ela emerge quando o modo de produção capitalista começa a declinar, durante a transição do capitalismo concorrencial para o monopolista, no início do século XX. O abstracionismo constitui um retrato do capital em estado puro, mas precisamente por isso ele só aparece quando essa formação social inicia sua decadência."

A partir daí, podemos explicar as condições técnicas que empurraram a pintura para a ruptura com o naturalismo, no contexto da crise do sujeito burguês, que é o pano de fundo de toda a arte moderna.

Comentários

Unknown disse…
Seria possível buscar, em meio a tamanha produção de obras que se propõe abstratas, algum fio condutor que delimitasse o limite da abstração?
Ou seja, o momento em que a obra ultrapassa a vontade do artista e realmente expõe os elementos fundamentais de nosso tempo?


rodrigodoo disse…

Marcelo,

boa pergunta!

Nas próximas partes dessa série, principalmente na última (sobre a dissolução e a superação do abstracionismo) eu vou tentar mostrar como existe uma tendência para o subjetivismo, que tornaria a pintura uma simples expressão inconsciente do artista (por exemplo, no expressionismo abstrato), e como as melhores obras conseguem dominar essa tendência e fazer uma pintura relacionada dialeticamente com o nosso mundo.

Vou tentar colocar as próximas partes (umas quatro) de duas em duas semanas. Continua lendo, que você vai gostar!

Um abraço!
Unknown disse…
Aguardarei.

Abração
Unknown disse…
Aguardarei.
Abração