Pular para o conteúdo principal

Pequena História da Pintura Abstrata (2) - A experiência das vanguardas (primeira parte)


A experiência das vanguardas

Uma característica específica do modernismo foram as vanguardas, ou seja, pequenos grupos de artistas, unidos por um programa comum para as artes. Eu acho que pode ser provado que as pequenas seitas da extrema-esquerda copiaram esse tipo de concepção, a partir das contrarrevoluções dos anos 1930 que cortaram os seus vínculos com os movimentos de massas.

A proliferação das vanguardas (a fase mais louca foi entre 1905 e 1924) foi tão grande que surgiram dezenas de ismos, alguns efêmeros, explorando praticamente todas as formas de expressão possíveis. Até as coisas mais loucas que o pós-modernismo produziu já tinham sido criadas pelas vanguardas do alto modernismo, por exemplo, as instalações (a Casa do Kurt Schwitters), arte conceitual (as coisas do Marcel Duchamp), obras aleatórias (poemas dadaístas), música concreta (futurismo italiano) etc. Como apontou o Fredric Jameson, o novo do pós-modernismo não são as experiências, e sim o contexto cultural da época.

Das várias experiências modernistas (eu sou absolutamente apaixonado pela arte moderna), como aqui é eu tô falando da pintura abstrata, as mais importantes como passagem para o novo gênero são as seguintes:


Fauvismo, Cubismo e Orfismo (França)
Matisse, A Dança, 1910
Ainda antes do futurismo, em 1905, o fauvismo ("ferismo", por causa da frase do crítico que disse que comparou os pintores com feras) foi a primeira vanguarda. É visível que se trata de uma radicalização da experiência do Gauguin: formas estilizadas, quase decorativas, cores chapadas, tema alegórico. O fauvismo acabou com a perspectiva e deu autonomia às cores.

Braque, Casas de Estaque, 1908
Já o cubismo começou em 1907, com Georges Braque. Se o fauvismo partiu de Gauguin, o cubismo partiu da "arte sólida" de Cézanne, decompondo as figuras nas suas formas geométricas básicas e pintando os diferentes ângulos lado a lado, desmembrando os objetos. O objetivo era a forma, e não a composição de linhas e cores, como no caso do fauvismo. Por isso, o tratamento das cores era o oposto: cores neutras, dando destaque às formas.

Mondrian, A árvore cinzenta, 1911
O holandês Piet Mondrian já estava desenvolvendo, sozinho, experiências parecidas com as do cubismo em seu país. Em 1911, ele foi morar em Paris, onde conheceu Braque e Picasso, e em pouco tempo radicalizou o cubismo até a abstração.

Em 1913, o cubismo gerou a sua própria contradição, pelas mãos de Sonia e Robert Delaunay. O orfismo (de Orfeu) procurava encontrar o ritmo na pintura através de harmonias com as cores. Com as cores substituindo as formas, estava concretizada a ruptura com a representação.

Sonia Delaunay, Mercado Português, 1915

Aliás, eu acabei de ficar puto, porque sempre pensei que o criador do orfismo tinha sido o Robert Delaunay, e tem essa citação da Sonia explicando que a ideia foi dela (coisa que ninguém contestou), mas ela só aparece nos livros entre parênteses (quando aparece) como a esposa do Delaunay. Nas palavras dela:

"Em torno de 1911, eu tive a ideia de fazer para o meu filho, que tinha acabado de nascer, uma colcha de retalhos como as que eu tinha visto nas casas de camponeses russos. Quando ela ficou pronta, o arranjo dos retalhos me pareceu evocar concepções cubistas, e então tentamos aplicar o mesmo processo ao outros objetos e pinturas"

Robert Delaunay, Primeiro Disco, 1913
Imagina se tem como dizer que isso é machismo!

A mesma coisa no caso da Sophie Taeuber-Arp, precursora da Arte da Terra, que o viúvo dela, o Jean Arp, tentou que fosse reconhecida entre os grandes artistas da época, mas que hoje também é quase desconhecida.

As harmonias de cores puras foram a mesma proposta que o Kandinsky estava tentando, ao mesmo tempo, na Alemanha, e a origem comum da concepção está nas sinestesias de Baudelaire e do simbolismo, uma interpretação mística das correspondências, como nos versos imortais:


Correspondências

Co
A natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

Como ecos longos que à distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.

Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como o oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,

Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.


(Tradução de Ivan Junqueira)


Essa visão é tirada diretamente da alquimia (o que está em cima é como o que está embaixo), da Tábua da Esmeralda, e não é por acaso que tanto o Kandinsky como o Mondrian tivessem tido contato com as ideias ocultistas da teosofia e antroposofia.


Der Blaue Reiter/O Cavaleiro Azul

Na Alemanha, as raízes da pintura abstrata estão no expressionismo, movimento que partiu da obra do Van Gogh, com uma estética que deformava a reprodução da realidade sob a tensão das "terríveis paixões humanas".

Franz von Stuck, Batalha por uma Mulher, 1905
Os dois primeiros grupos de vanguarda na Alemanha foram a Secessão e o Jugendstil (estilo da Juventude), ambos de 1892. Os dois eram pós-impressionistas e ecléticos, misturando as técnicas de cartazes francesas e inglesas, pré-rafaelismo, simbolismo e impressionismo. Elas trouxeram as técnicas não-realistas que foram usadas na arte moderna.

O expressionismo propriamente dito, em que a deformação da realidade se tornou o método principal de expressão, se deve a dois grupos que vieram depois, em que as novas técnicas foram utilizadas a serviço de uma nova estética, superando a mistureba que reinava antes.

A mudança também aconteceu no conteúdo das obras. Ao contrário do individualismo mórbido dos pós-impressionistas (o maior exemplo é o Franz von Stuck, com as suas pinturas de temas sexuais explícitos), os expressionistas faziam uma obra de crítica social com tons utópicos ou apocalípticos (depois da Primeira Guerra, os expressionistas se dividiram entre uma esquerda socialdemocrata ou comunista, provavelmente a maioria, e uma direita nazista). Essa visão progressista e utópica também marcou os abstracionistas, como vamos ver depois.


Ludwig Kirchner, Cena de Rua em Berlim, 1914
O primeiro grupo foi Die Brücke (A Ponte, 1906-1913), que começou como uma expressão alemã dos pós-impressionismo francês e depois do fauvismo, até se firmar como expressionista. O expressionismo é um movimento muito rico, que também existiu na literatura, no teatro e no cinema, mas o que interessa pro nosso assunto é que os próprios pressupostos do estilo são um obstáculo para a passagem à abstração (como isso aconteceu no expressionismo abstrato, eu vou falar no final dessa série).

Na Floresta, 1905
E aí entra o segundo movimento, Der Blaue Reuter (O Cavaleiro Azul). O Kandinsky passou por boa parte dessa trajetória que eu falei, ele que morava na Alemanha desde 1896. Foram os temas folclóricos, baseados nas lendas russas, em que ele pôde deixar a imaginação voar mais livre, que libertaram as cores e sugeriram a ele a possibilidade de romper de vez com a figuração.

Composição V, 1911


Assim, em 1911, quando a sua Composição V teve a sua exibição na exposição da NKVM (Nova Associação dos Artistas de Munique) rejeitada, ele, junto com Franz Marc, criou Der Blaue Reuter. Com o nome sintonizado com as teorias espiritualistas de Kandinsky (em que o nome representa uma cruzada espiritual contra o materialismo), foi nesse grupo que o salto para o abstracionismo pôde ser dado.

Um caso bem interessante é o do Franz Marc, que morreu lutando na Primeira Guerra Mundial. O estilo dele permaneceu expressionista, mas aconteceu uma mudança de temas, em que a pintura de animais foi se tornando o assunto exclusivo da obra dele, e de estilo, cada vez mais puxado para o abstrato. Aqui:



Cavalo numa paisagem, 1910
Animais numa paisagem, 1914
Aquele livro do Jung com as jungianas mais importantes, O Homem e seus Símbolos, tem um ensaio da Aniella Jaffé em que ela interpreta a evolução do Franz Marc como uma fuga diante da humanidade, por causa do espectro da guerra. Primeiro, ele escolhe os animais, e depois a ansiedade dele é tão grande que ele deturpa a figuração para não ver as imagens. De acordo com essa interpretação, a arte abstrata seria uma expressão do desespero.

Do Kandinsky, que é um dos meus herois, eu vou falar mais nas próximas partes. A experiência das vanguardas ainda não se esgotou, na próxima parte eu vou falar dos dois futurismos e da vanguarda russa (e, quem sabe, das Américas).

Comentários