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Teoria do Privilégio, mais uma ideologia formalista da sociologia burguesa


Eu tava devendo essa postagem ao Thiago Sobral há quase dois meses, e reparei que duas postagens sobre o assunto no mesmo dia, no Escreva Lola Escreva e nas Blogueiras Feministas, são um ayat de que eu devo despachar logo isso.


A vaga noção de privilégio

Uso a expressão "vaga noção", porque "privilégio" não merece ser chamado de conceito. De tão vago que é, eu acho que pode significar duas coisas diferentes:


a) a ideia de que pessoas privilegiadas por serem homens, brancos, ricos, heterossexuais etc desfrutam de oportunidades e segurança que não são acessíveis a quem não tem esses privilégios.

b) a ideia de que as pessoas privilegiadas se beneficiam das que não tem os respectivos privilégios.


Parece que a visão da Lola é a primeira, pela postagem dela.

Se for esse o caso, então o conceito de privilégio não significa nada, a não ser uma visão em negativo da discriminação. Isso tem a ver com o contexto social onde surgiu a teoria do privilégio, o pântano da esquerda americana.


Origem da teoria do privilégio

Quase ninguém mais deve lembrar, mas a primeira encarnação da teoria do privilégio foi com o conceito de privilégio branco (white skin privilege), formulado por Noel Ignatin, um marxista antirrevisionista (hoje chamaríamos de maoísta) americano, com ajuda de Ted Allen, na obra White Blindspot (Ponto Cego Branco), de 1967.

Nos EUA, desde a Primeira Guerra Mundial não existe um partido de massas dos trabalhadores. A extrema-esquerda americana começou a crescer na sombra do maior movimento de massas do século nos EUA, o movimento pelos direitos civis que, na ausência de uma organização dos trabalhadores, era dirigida por setores ligados ao Partido Democrata e às igrejas, como era o caso do Martin Luther King.

E logo as correntes da extrema-esquerda mais realistas tentaram entender quais eram os motivos do atraso político e ideológico da classe operária americana. E, corretamente do meu ponto de vista, eles viram que a raiz do problema estava na divisão entre a maioria de operários brancos, e a massa de trabalhadores negros superexplorados. A hostilidade dos trabalhadores brancos contra os negros é que unia os primeiros com a burguesia imperialista.

Até aí, tudo bem. A partir dessa constatação, seria necessária uma teoria para explicar essa dinâmica. Essas teorias foram criadas depois (não pelos trotskistas e maoístas ortodoxos, que ficavam inventando as mais criativas formas de negar a realidade e fingir que a classe operária branca dos EUA era revolucionária), e a mais interessante (pra mim, mesmo eu não concordando com ela) é a que ficou mais famosa na versão de J. Sakai, escritor de Settlers: The Mythology of White Proletariat (Colonos: a Mitologia do Proletariado Branco), segundo a qual a classe operária branca se beneficiava materialmente do racismo e, portanto, teria a perder com qualquer mudança no sistema.

Mas a teoria do privilégio branco foi criada numa etapa bem inicial, e dificilmente seria tão clara. O conceito de privilégio nela parece com o de "salário psicológico", do W. E. B. Du Bois, falando sobre o comportamento dos operários brancos depois da Guerra Civil americana. Ou seja, "vantagens" totalmente ilusórias. Coerentemente com isso, toda a política do Ponto Cego Branco era de que os trabalhadores brancos tinham que lutar para reivindicações específicas para os negros, como forma de renunciar aos privilégios, o que seria bom para ambas as partes, porque levaria à construção de um movimento operário de massas e consciente politicamente.

A solução de Allen e Ignatin nem defendia a integração entre as reivindicações de brancos e negros nem dizia que os brancos tinham interesse na manutenção do racismo. Essa indeterminação passou para as outras aplicações da teoria.


Privilégio Masculino e as mutações do privilégio

Na mesma época em que surgiu a teoria do privilégio branco estava se formando a Segunda Onda do feminismo. As militantes pelos direitos civis e contra a Guerra do Vietnã que sofriam com o machismo dos homens dentro do movimento passaram a se organizar autonomamente para discutir a condição das mulheres.

Elas acabaram trazendo o conceito de privilégio para esse contexto, transformado em "privilégio masculino". Só que aí é que entra o problema do conceito de privilégio, como vamos ver agora.

Mas, para explicar isso, precisamos reparar que o conceito de privilégio, que foi usado por marxistas para analisar uma diferença social que acontecia na mesma classe social (definida de acordo com a marxismo), acabou se tornando o eixo da análise das contradições sociais, principalmente porque, como eu falei, o marxismo sempre foi fraco na esquerda americana, e a composição de classe média dela é um terreno fértil para teorias baseadas na culpa e autoflagelação.

Assim, começaram a falar em privilégio de classe. Isso eu não sei quando começou, e até gostaria de alguém me dizer, se soubesse. Assim, o conceito de luta de classes foi transformado em mais uma manifestação de privilégio. Isso tem dois traços muito importantes: o primeiro é que a dominação de classe vira só mais um privilégio, e não mais o eixo da reprodução material da sociedade.

Mas o mais importante é que o conceito de privilégio passa a recobrir o de contradição, que é um dos conceitos fundamentais da dialética. O conceito de contradição é rigoroso, ele só se aplica quando um dos elementos só pode existir a partir da negação do outro. Isso é exatamente o que acontece na exploração de uma classe pela outra. Por exemplo, só pode existir burguesia porque ela consegue se apropriar do trabalho não-pago do proletário, que só é proletário porque sofre essa exploração através do salário.

Das duas, uma: ou o conceito de privilégio não tem essa estrutura (o que está implícito na ideia de que alguém pode renunciar a seus privilégios), e então é só uma forma inexata de falar de discriminação, ou então ele tem, e todo "privilegiado" tem interesse em manter esse privilégio. Muitas vezes, é exatamente isso o que os defensores da teoria do privilégio estão dizendo.

Voltando aos casos que eu falei: é evidente que a estrutura do racismo não funciona dessa forma, a não ser em contextos bem específicos, tipo a África do Sul na época do apartheid, Israel hoje em dia etc. O que é considerado privilégio branco na verdade é a vida sem a discriminação sofrida pelos negros. Até mesmo os setores "terceiromundistas" da esquerda americana, que negam que os trabalhadores brancos possam lutar contra o capitalismo, fazem isso não por uma teoria do privilégio, e sim por uma análise de classes específica.

Pra ilustrar: se os negros pararem de ser discriminados pelo racismo estrutural no Brasil, isso não vai significar perda para os brancos. O que vai acontecer é que as coisas que são restritas para os brancos (alguns cursos universitários, não se visto como bandido pela polícia, ter referências positivas nos meios de comunicação, não sofrer perseguição religiosa etc) vão virar direitos de todos.

No caso das mulheres, eu acho que se trata de um caso diferente. O patriarcado é baseado no controle da reprodução e sexualidade das mulheres pelos homens, para benefício dos homens. Logicamente, o controle das mulheres sobre a própria sexualidade prejudicaria os homens (por exemplo, a prostituição não ia se generalizar para os dois sexos, e sim ia acabar, a mesma coisa com a violência doméstica, os estupros etc). Por isso, eu concordo com a teoria feminista radical, que diz que homens e mulheres são classes sexuais (conceito criado pela Shulamith Firestone), em analogia (nesse caso certa) com as classes sociais do marxismo.

Mas a dominação das mulheres é uma forma de dominação única, porque não implica em segregação (pelo contrário), não se divide em uma minoria e uma maioria (são praticamente duas metades) e tem uma tendência a criar papeis sociais não só desiguais, mas também complementares. Por isso, eu acho errado usar o conceito de privilégio masculino, já que a ideia de privilégio só por acaso serve nesse tipo de relação, e em quase todos os outros não funciona. Prefiro patriarcado, assim como eu não falo de privilégio de classe, e sim de capitalismo.

Me deu vontade de falar da teoria dual usada por algumas feministas socialistas, mas eu não vou fazer isso hoje.


Conclusão

O meu heroi, Gyorgy Lukács, mostrou no seu calhamaço A Destruição da Razão como toda a sociologia burguesa, pela sua necessidade de evitar a análise concreta da sociedade (que a obrigaria a reconhecer as contradições de classe), necessariamente tem que cair em esquemas formalistas distantes do ser do objeto que está analisando.

Os setores, altamente influenciados pela sociologia acadêmica, que formularam as várias versões da teoria do privilégio sempre fizeram isso: criaram um esquema abstrato e tentaram conter as várias manifestações de desigualdade social dentro dele. Mas, justamente por ser um esquema abstrata imposto de fora, ele não nos permite entender concretamente como se produzem essas desigualdades, e isso leva a conclusões políticas seja moralistas (a mudança depende de você renunciar aos seus privilégios) ou derrotistas (impedindo a unidade dos setores discriminados com outros setores das classes dominadas).


Abusos pós-modernos

Mas até aí, estamos falando de desigualdades sociais reais (tem também a heterossexualidade compulsória, mas isso faz parte do patriarcado e não acrescentaria muito no que eu tô falando). Mas vivemos debaixo da hegemonia obscurantista e irracionalista do pós-modernismo e, como não poderia deixar de ser, até o conceito ruim de privilégio foi deturpado!

Eu vou só falar de três casos, porque a minha paciência tem limite.


Abilitismo: no capitalismo, as pessoas deficientes são especificamente oprimidas porque não conseguem realizar o trabalho socialmente necessário com a mesma produtividade que a maioria. Isso por razões biológicas. Fácil de entender, né?
Que lindinha!

Claro que não! Porque não dizer que, por exemplo, uma pessoa surda tem apenas uma forma diferente de se comunicar e que, portanto, ela é uma minoria linguística oprimida politicamente, em vez de ter deficiência da audição?

Eu estou usando esse exemplo porque a minha filha menor, a Luísa, é surda, e a gente, que quer fazer implante coclear nela, tem que aturar esse tipo de argumentação.


Privilégio Cis: pras pessoas que não perderam o seu tempo precioso estudando teoria queer, aviso que eles chegaram à conclusão de que existem mulheres e homens cissexuais, ou seja, que nasceram, respectivamente, com vagina e pênis, e mulheres e homens trans*, que nasceram, respectivamente, com pênis e vagina.

Nem vou falar da idiotice de negar que o sexo tenha alguma coisa a ver com o gênero (o gênero é uma forma de controlar socialmente os sexos, ou melhor, o sexo feminino), quanto mais de negar que exista sexo, porque eu já falei disso. O pior é que as transfeministas, com o apoio de alguns setores identificados com o feminismo socialista (eu ainda vou falar sobre isso), chegaram à conclusão de que ser cissexual é privilégio!

Além dessa teoria bloquear qualquer possibilidade de explicar porque uma pessoa se identifica com o gênero do sexo oposto, ainda tem servido para as transfeministas atacarem as feministas "cissexuais", como se ser mulher no patriarcado fosse privilégio.

Logicamente, eu sou favor que as pessoas trans se organizem e lutem por seus direitos (por exemplo, as travestis, que são grande parte das pessoas trans, sofrem misoginia quando passam e homofobia quando não passam, o que eu acho que é uma definição meio doida de transfobia, como eu falei um dia desses com a Lenna), o que pode ser feito sem necessidade dessa babaquice pós-moderna, como o exemplo dessa militante argentina do PCA, que é travesti, mostra.


Mas o Oscar vai para o... especismo! Você vai vendo que a biologia vai sofrendo cada vez mais, até que alguém resolve reivindicar direitos para todas as espécies animais (como se, por exemplo, as galinhas tivessem interesse em liberdade de imprensa e de organizar sindicatos). Pior ainda, comparam consumo de carne com escravidão (pra mim, comparar um porco com um negro é claramente racista) e, pra finalizar, defendem que não reconhecer esses "direitos" é especismo.

Sobre esse assunto, mantenho a minha posição de que os grandes primatas, baleias e golfinhos devem ter direito à vida, liberdade e proteção contra tortura, e que os outros animais podem devem ser protegidos de violência desnecessária (o que inclui farra do boi, mas exclui cerimônias de candomblé e pesquisas de medicamentos). Se os animais discordarem, têm todo o direito a criarem suas organizações e lutarem pela sua libertação.

Comentários

Rafael Tenorio disse…
Interessante o texto, porém peca muito exatamente sobre o que critica. Não me condene se fui relativamente equivocado na minha especulação mas provavelmente você é branco, não? classe média e heterossexual pelo texto é possível perceber.

Gosto do resgate da ideia de privilégio que você trás, de fato, me fugia as informações sobre a construção dela. assim como você localiza o tempo e contexto do surgimento deste conceito. também seria coerente você fazer isso em relação as suas próprias reflexões.

O privilégio em síntese expressa uma relação dialógica com a estrutura hegemônica. é claro que as coisas não são tão preto no branco como a racionalidade marxista acredita ser. mas de fato se faz uma premissa elementar compreender que todos nós sofremos uma imposição de valores hegemônicos brutais e que reproduzimos ela de alguma forma, seja nas nossas preferências, subjetividades e até mesmo nossa racionalidade.

resgatando o que você fala, o problema das trans pode ser resumido pela misoginia, até mesmo as trans homens sofrem muito disso, afinal a condição biológica de mulher fazem este ódio serem aplicados a eles diretamente. mas me intrigra bastante não acreditar que mulheres cis não possuem diálogos permissivos com a hegemonia, de fato, a posição destes agentes estão bem desfavoráveis neste jogo, mas há como negar que as mulheres, por mais subjugadas que sejam, tem sua existência permitida neste jogo?

A filosofia marxiana, infelizmente, ainda é muito limitada para compreender questões de relação de poder mais complexas, sobretudo após o êxito da globalização e da propagação do ideal branco-hetero-industrial-civilizado-ociendetal e a naturalização dele nos corpos humanos. você crítica o esquema abstrato de interpretação social, por ser uma imposição de fora mas o materialismo dialético é exatamente isso. um pouco confuso.

Compreendo a questão do privilégio não como algo a ser renunciado, porque não se renuncia abstrações e subjetividades como se joga um papel no lixo, a grande chave é permitir ser questionado e não reivindicar o controle das reflexões dos setores marginalizados. Se um grupo de feministas radicais separatistas decidem criar uma comunidade livre de homens, por mais que eu tenha observações em relação a isso, eu só posso legitimar esta ação por compreender a relação entre homens e mulheres de forma extremamente violenta.

Cara, eu adoro uma picanha, mas não consigo negar que para não ser chamado de especialista eu deveria ir caçar, tratar e assar meu javali, anta ou ser humano.
Rafael Tenorio disse…
ah, esqueci de dizer, que de fato os animais devem ter a necessidade humana de se organizarem e necessidade humana de reivindicarem sua exploração para sociedade.

sugiro que passemos a criar e comer leões, talvez assim possamos pensar melhor sobre nossas engenharias alimentícias.

só pra deixar claro, não sou vegetariano, mas acho bem escroto deslegitimar esta luta apenas porque tenho um gosto pessoal de comer carne
rodrigodoo disse…
Tudo bom, Rafael?

Os seus comentários ilustram bem o que eu falava: que a teoria do privilégio substitui a análise da realidade por moralismo.

Pra começar, eu não falei no texto que eu sou filho de nordestinos (não considero como branco), da classe trabalhadora e bissexual, simplesmente porque as minhas posições têm que ser avaliadas por si mesmas, e não pelo meu perfil.

Analisar os valores que reproduzimos é essencial, mas isso não substituiu tentar entender as estruturas sociais que criam as desigualdades.

As mulheres (não existem mulheres "cissexuais", porque ninguém nasce com o sexo "errado", a não ser que você seja espiritualista e ache que existe uma alma separada do corpo, que pode ter o sexo diferente) podem reproduzir os valores hegemônicos, assim como as pessoas trans, mas o gênero é uma hierarquia, e ter o sexo feminino é "ter a existência permitida", como você diz, na parte de baixo dessa hierarquia. E isso não é privilégio nenhum.

O materialismo dialético tem vários problemas, só que eu só tenho como discutir eles contigo se você me apontar de qual você tá falando. E eu mesmo tô longe de ser marxista ortodoxo, é só você ler o blog que tu vai ver.

E eu não estou controlando a reflexão de ninguém, isso que está fazendo é você, quando acha que os setores que sofrem de opressões específicas todos são adeptos da teoria do privilégio. Todos temos o direito e a obrigação de criticar as teorias e estratégias de qualquer movimento, se estivermos comprometidos com a luta pra mudar a sociedade, sem medo de estar "deslegitimando" algum discurso.

Sobre a libertação animal, eu penso que devemos tratar como o criacionismo: até debater esse assunto é errado, porque pode dar a impressão de que ele é pra ser levado a sério.

Um abraço!
P.F. disse…
Que texto lúcido, e sete anos depois, como consegue ser ainda mais necessário!
rodrigodoo disse…
Obrigado, Patrícia!