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"Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio", do Fredric Jameson (2)



Antes de terminar o ano, eu quero voltar ao Jameson. Eu tinha parado quando o Guilherme tinha me feito duas perguntas (como anônimo) na primeira parte desse texto:

Aguardo ansioso sua colocação acerca do problema da autonomia. Estou ainda um pouco confuso acerca do que exatamente critica no autor. Certamente ficará mais clara quando escrever sobre sua apologia do capitalismo.

Vou responder mas, antes, vou falar de uma coisa que não tem nada a ver com o que ele perguntou (ele também faz isso comigo).

Por algumas circunstâncias (uma delas é que eu vou ter que devolver o livro), essa vai ser a postagem final da série, diferente das três ou quatro partes que eu tinha prometido, mas de que eu desisti (porque no fundo eu ainda pensava em fazer uma resenha do livro, ao contrário do que eu tinha falado na primeira parte).


O sujeito do realismo, do modernismo e do pós-modernismo

Pra começar, existe um tema importante de que eu não tinha conseguido falar na primeira parte, e que é a questão da dissolução do sujeito moderno (ou seja, burguês). Nesse ponto, de certa forma, eu acompanho o Lukács de Reificação e Consciência do Proletariado, ensaio do História e Consciência de Classe. O Jameson fala assim:

Os dualismos do moderno/pós-moderno são consideravelmente ainda mais intoleráveis do que a maioria dos dualismos corriqueiros; talvez isso os torne imunes de antemão aos maus usos de que tais dualismos são, infalivelmente, a marca e o instrumento. É possível que a adição de um terceiro termo – ausente deste trabalho, mas que é mobilizado em um trabalho correlato – possa ser usada para converter esse esquema reversível de modo a registrar a diferença em um esquema histórico mais produtivo e utilizável. O terceiro termo – vamos por um momento chamá-lo de “realismo”, na falta de uma palavra melhor – da conta da emergência de um referente secular a partir da eliminação dos códigos do sagrado pelo Iluminismo, ao mesmo tempo em que dá notícia do primeiro assentamento do próprio sistema econômico, antes que a linguagem e o mercado passassem pela segunda deterioração do moderno e do imperialismo.

O “realismo” estilo século XIX é um bom parâmetro para a decomposição do sujeito burguês. A filosofia moderna, desde Descartes, é a filosofia burguesa por ser uma filosofia do sujeito. A partir do Renascimento, a burguesia, apoiada no desenvolvimento das forças produtivas, consegue romper intelectualmente com o Universo fechado, aristotélico, da Idade Média. Com a destruição da ordem divina da natureza, em que tudo tinha o seu lugar, as coisas passam a girar em torno do sujeito, o indivíduo que transforma o mundo com a sua ação e o seu pensamento.

O auge da filosofia moderna acontece no início do século XIX, com Hegel, no período imediatamente posterior à Revolução Francesa. Na filosofia de Hegel, o mundo inteiro é produto do movimento do Espírito. O passo seguinte só poderia ser entender o mundo (social) como práxis, como acontece no marxismo.

A literatura que corresponde ao período em que a burguesia revolucionária chega ao poder é o realismo de Balzac e Stendhal, obras que mostram todo o panorama das relações sociais da época. O sujeito por excelência do realismo é o narrador onisciente, como a gente já aprendeu no segundo grau. O narrador onisciente era capaz de ver e compreender todas as interrelações da sociedade e mostrá-las objetivamente. Era como a burguesia que tinha assumido o poder e começava a reorganizar a sociedade à sua imagem e semelhança (é famosa a história de que o Stendhal lia o Código Civil napoleônico todos os dias).

É o nosso querido George Lucas que vai mostrar que, a partir das Revoluções de 1848, a burguesia se torna uma classe conservadora e que isso se reflete na literatura com a desintegração do realismo, lenta no começo, mas depois chegando a velocidades vertiginosas no começo do século XX. Com a burguesia se tornando uma classe conservadora, o sujeito burguês entra em crise.

O primeiro sinal de crise é o naturalismo, que aparentemente é um aprofundamento do realismo, mas que na verdade começa a dissolver a obra na aparência imediata e na superposição mecânica. O reverso (aparente) do naturalismo é a reação simbolista, em que o mundo se dissolve em... aparências imediatas e superposições mecânicas, só que ordenadas pelo estado interior do indivíduo.

O modernismo é o momento em que a crise do sujeito se transforma em método. Os dois meios exteriores de que o Jameson fala, o Inconsciente e as formações precapitalistas, entram massivamente na consciência do sujeito burguês, e a despedaçam. É a arte africana no cubismo, a escrita automática surrealista etc. O grande tema dos modernistas é a desintegração do sujeito debaixo de forças além do seu controle, de Kafka a Joyce, de Picasso a Malevitch.

Não por acaso, e sim como expressão direta dessa desintegração, muitos gênios do modernismo foram fascistas – Ezra Pound, Fernando Pessoa, Pirandello etc. E, por outro lado, a tentativa de superação dessa desintegração levou outra ala dos modernistas ao comunismo – Picasso, Breton, Eiseinstein etc.
O pós-modernismo surge como estilo no meio da década de 1950, período também do nascimento do estruturalismo. O pós-modernismo é o aprofundamento da crise do sujeito burguês, ou melhor, a sua aniquilação. De forma característica, essa aniquilação costuma ter uma das duas formas: ou a falsa objetividade, no estilo estruturalista (como não lembrar do rosto na areia do final de As Palavras e as Coisas?), ou a fragmentação pós-estruturalista num grau tão alto que o excesso de subjetividade impede até que exista um sujeito viável. Que dizer, concretismo ou Chacal.

O sujeito vai voltar? Quem sabe? O meu palpite é que o pós-modernismo é a forma final da cultura no capitalismo, e que o sujeito só volta quando o sujeito coletivo porém heterogêneo da humanidade emancipada se tornar uma existência concreta.


Acabou a autonomia da arte?

Voltando às perguntas do Guilherme. Como eu tinha falado, a tese do Jameson (que é a mesma do Bukhárin) diz que não existe mais “fora” da sociedade capitalista, e que todas as outras formações sociais foram eliminadas. Essa é a base da afirmação de que os mestres do modernismo foram a última expressão do artista-artesão. Além disso simplesmente não ser um fato, do ponto de vista não só das formas de produção artística como dos estilos, isso também não aconteceu.

A hipótese do Jameson é que a alta cultura, até o período do modernismo, era produzida nas universidade e por "artistas-artesãos", mas que ela terminou sendo absorvida pela mídia e se subordinou a ela. Para ele, isso explica, por exemplo, o surgimento da videoarte, a dissolução ou enfraquecimento das fronteiras entre alta cultura e cultura popular, os rumos do cinema, a integração das artes plásticas no mercado etc. 

Existe sim esse fenômeno, mas eu vejo nessa tese dele um prolongamento da tese bukharinista. Não vejo a autonomia das universidades tendo sido completamente destruída, como ele diz, e não vejo como aquela camada social de artistas "artesãos" (na verdade, pequeno-burgueses no sentido marxista de detentores de pequenas propriedades) tenha desaparecido, mesmo com esse avanço (que é real) da absorção da esfera cultural pela mídia.

Nenhuma época da história da arte é monolítica, aqui também vale o desenvolvimento desigual e combinado descoberto por Trotsky. Hoje existem poemas românticos, romances realistas, trovas e poesia de cordel, pintura dita naïf. Ainda existem os que Gramsci chamou de intelectuais tradicionais, que ficam em suas torres de marfim, apolíticos. Existem cooperativas de artistas, grupos de militância cultural-política, novas formas, em rede, de produzir.

Como no caso do modernismo, não se trata de negar as condições ideológicas condicionantes, e sim tentar superá-las de forma positiva. Eu poderia citar o Hélio Oiticica, o Godard, a Ana Cristina César, o Caetano Veloso. E eu não posso citar os situacionistas, a Lygia Clark – minha artista preferida – Luther Blisset, o punk rock etc, que tentam “saltar por cima” das condições reais, e prefigurar, de forma utópica (no mau sentido) a arte emancipada do futuro.

Se é isso que o Jameson está querendo dizer quando fala em cartografia, eu concordo com ele. Mas não me parece ser esse o caso.

Por exemplo, olha ele analisando essa fotografia aqui do Oliver Wasow:

Penso ser exatamente nessa diferenciação interna – faixas no interior da imagem que repercutem umas nas outras – que a vocação utópica da fotografia mais recente fica assegurada. (...) Que tal utopismo é uma ideologia – inclusive uma ideologia estética – parece bastante claro; mas em uma época em que todos concordamos, minimamente, que tudo é ideologia, ou melhor, que não há nada fora da ideologia, essa não parece ser uma afirmação comprometedora. Entretanto, em nossos dias, quando as reivindicações do oficialmente político parecem extraordinariamente enfraquecidas, e quando adotar antiga posições políticas parece causar grandes embaraços, devemos ressaltar também que se encontra em toda parte hoje – e não somente entre os artistas e escritores – algo como um não reconhecido “partido da utopia”: um partido underground, cujo programa não está publicado  e talvez nem mesmo esteja formulado, cuja existência é desconhecida pelos cidadãos em geral e pelas as autoridades, mas cujos membros são capazes de reconhecer uns aos outros por uma espécie de sinais secretos como os maçônicos. Tem-se até a impressão de que alguns dos artistas discutidos aqui já aderiram.

Apologia indireta é isso: enxergar potencial utópico em fotografias do estágio final de desagregação da forma artística. Bem, como eu falei, essa é a minha opinião sobre este livro do Jameson, é um autor que eu achei interessante e eu vou ler outras obras dele (O Inconsciente Político parece que é legal), não é um posicionamento sobre o Jameson.


Concluindo

Existe uma coisa muito interessante no Jameson, que eu nunca tinha visto nos críticos do pós-modernismo. Ele mostra as condições de produção do pós-modernismo. Isso é um grande passo à frente porque, se tratando o pós-modernismo como mera ideologia (ou seja, falsa consciência), a dimensão do problema se reduz a procurar os "erros" conceituais ou artísticos, como se fosse simplesmente possível voltar a uma forma moderna de fazer teoria ou arte sem maiores dificuldades. E de todos (até mais que o David Harvey), o Jameson é o que melhor tenta entender o pós-modernismo como parte da dinâmica do capitalismo contemporâneo, mesmo que seja, como eu falei, de uma forma unilateral.

E é essa forma unilateral com que ele inscreve o pós-modernismo dentro do capitalismo tardio que é a base do ponto fraco dele, a subestimação das contradições internas na cultura do capitalismo tardio. Como ele é marxista, ele não vai deduzir do fim que ele vê da autonomia da cultura a impossibilidade de crítica. Ao contrário, a própria análise obriga, por assim, dizer, que ele passe a ver as contradições do capitalismo se reproduzindo dentro da própria cultura pós-moderna, e que encontre um potencial utópico dentro das próprias formas decadentes da arte pós-moderna.

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