Uma
crítica de Capitalism: Competition, Conflict, Crises (Oxford
University Press, 2016), de Anwar Shaik
Anwar
Shaikh é um dos economistas mais importantes do mundo inspirados em
Karl Marx e nos economistas clássicos (“economia política”, se
você preferir). Ele lecionou na New School for Social Research de
Nova Iorque por mais de 30 anos, e escreveu três livros e sessenta
artigos1. Essa é a sua obra mais ambiciosa. Como Shaik diz, é uma
tentativa de derivar a teoria econômica do mundo realm e então
aplicá-la aos problemas reais. Ele aplica as categorias e a teoria
dos economistas clássicos a todas as grandes questões econômicas,
incluindo as que supostamente fazem parte da economia mainstream,
como oferta e procura, preços relativos de bens e serviços, taxas
de juros, preços de ativos financeiros e mudança tecnológica.
Uma
abordagem clássica
Shaikh
diz que a sua abordagem “é muito diferente tanto da economia
ortodoxa quanto da tradição heterodoxa dominante”2. É a
abordagem clássica, em contraste com a neoclássica. Em outras
palavras, ele rejeita a abordagem que parte de “empresas perfeitas,
indivíduos perfeitos, conhecimento perfeito, comportamento egoísta
perfeito, expectativas racionais etc”, e então “várias
imperfeições são introduzidas na história para justificar padrões
individuais observados”, mesmo que “não possa haver uma teoria
geral das imperfeições”. Em vez disso, Shaikh parte do
comportamento humano real, em vez do do assim chamado “homem
econômico”, e do conceito de “competição real”, em vez da
“competição perfeita”. Isso é enfatizado nos capítulos 3, 7 e
8 em particular.
Entretanto,
diferente do esforço recente de Ben Fine e Ourania Dimakou na sua
obra de dois volumes Microeconomics e Macroeconomics, Shaikh
não realiza uma crítica da economia mainstream como tal3. Em
vez disso, ele tem como objetivo apresentar uma abordagem econômica
completamente alternativa, que ele chama de “clássica”, seguindo
a tradição dos primeiros economistas políticos do capitalismo
industrial, Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx.
O
livro é o produto de 15 anos de trabalho, então levou mais tempo
para ser gestado do que o que Marx levou, de 1855 a 1867, para
terminar o volume I do Capital. Mas ele cobre muito terreno. Toda a
teoria é comparada com dados reais em cada capítulo, e também com
os argumentos neoclássicos e keynesianos/pós-keynesianos. Shaikh
desenvolve uma teoria da “competição real” e a aplica para
explicar os preços relativos empíricos, as margens e taxas de
lucro, taxas de juros, preços de títulos e ações, taxas de câmbio
e balanças comerciais. Ele mostra que a oferta e a procura dependem
da lucratividade, e interagem de uma forma que não é nem a Lei de
Say nem keynesiana, e sim baseada na teoria clássica do valor. Uma
teoria clássica da inflação é desenvolvida e aplicada a vários
países. Uma teoria das crises é desenvolvida e integrada à
macrodinâmica.
É
um monte de coisas. Mas os leitores podem seguir detalhadamente os
argumentos de Shaikh através de uma série de 21 palestras em vídeo
que cobrem todos os capítulos do livro4. Ele podem ser muito
técnicos em alguns pontos, mas o esforço de concentração vale a
pena. Veja a Palestra 15 em particular, com o resumo geral de Shaikh
sobre o capitalismo. Também existem entrevistas curtas de Shaikh
sobre a mensagem principal do seu livro, tudo lindamente organizado
por Shaikh no seu site5.
Existem
dois pivôs básicos na sua abordagem “clássica”. Primeiro, o
motivo do lucro, e não fazer as coisas ou prestar serviços, é
visto como o motor do capitalismo: “O capital é uma forma social
particular da riqueza orientada pelo motivo do lucro. Com esse
incentivo, vem o correspondente impulso para a expansão, para a
conversão de capital em mais capital, de lucro em mais lucro”6.
Segundo,
a economia capitalista não deve ser vista como uma economia de
mercado “perfeita”, acompanhada de “imperfeições”, e sim
como capitais individuais em competição para ganhar lucro e
participação no mercado. O monopólio não deve ser contraposto à
competição, como os economistas neoclássicos, ortodoxos, e até
mesmo alguns marxistas fazem. A competição real é uma luta para
baixar os custos por unidade do produto, a fim de ganhar mais lucro e
participação no mercado. No mundo real, existem capitais com vários
graus de poder de monopólio competindo e mudando continuamente,
porque o poder de monopólio se perde como novos capitais entrando no
mercado e nova tecnologia que corta os custos. A competição real é
uma luta sem fim por poder de monopólio (participação dominante no
mercado) que nunca acaba totalmente ou para sempre: “cada capital
individual opera sob esse imperativo... que é a competição real,
antagônica por natureza e de operação turbulenta. É tão
diferente da assim chamada competição perfeita quanto a guerra é
do balé”7.
Uma
teoria do valor clássica ou marxista?
A
obra de Shaikh, com a sua análise das crises no capitalismo e o seu
apoio declarado à teoria do valor de Marx, tem sido comumente
considerada parte da tradição marxista. Mas não é por acidente
que Shaikh não quer ser chamado de economista marxista ou que o seu
livro Capitalismo seja visto como uma crítica marxista
moderna seguindo a obra de Marx de título semelhante (mesmo que Marx
nunca tenha usado a palavra “capitalismo”, só “capital”). Em
vez disso, Shaikh subsume a teoria marxista na teoria clássica, e
tenta preencher a lacuna entre a análise econômica marxista e a do
grande economista clássico do capitalismo moderno, David Ricardo8,
junto com as teorias de Piero Sraffa, o “neorricardiano” do
século XX.
O
objetivo de Sraffa era semelhante ao de Shaikh: trabalhar sobre e
reconciliar os constructos teóricos de Ricardo com os de Marx. Mas a
realidade é que Sraffa abandonou uma teoria do valor (quanto as
coisas valem e qual o seu preço) que era baseada no tempo de
trabalho envolvido na sua produção, e regrediu para medir as coisas
(e os serviços?) através da quantidade física de mercadorias e
componentes que formam um novo produto. Assim, a obra principal de
Sraffa não por acaso se chama Produção de Mercadorias através
de Mercadorias9.
Sraffa
rompe completamente com a teoria do valor de Marx e, como resultado,
é realmente incapaz de explicar a natureza da produção capitalista
como um processo de exploração por lucro, iniciado com o gasto de
capital-dinheiro para empregar trabalho para produzir mercadorias que
fazem mais dinheiro. Para Marx, o processo de produção capitalista
é D-M-P-M'-D' (onde “D' é dinheiro, “M” é mercadoria e “P”
é produção, onde o trabalho é executado).Assim, o dinheiro faz
mais dinheiro (valor), mas somente por causa do trabalho despendido
para criar mais valor. O processo de Sraffa é M-M'. Para Sraffa, o
papel do trabalho desaparece – ele é apenas mais uma “mercadoria”.
Marx
valorizava muito a obra de Smith e Ricardo, por causa do seu
reconhecimento objetivo de que só o trabalho cria valor. Mas ele era
altamente crítico do seu fracasso em sistematizar essa visão. Smith
é ilógico. Por um lado, ele reconhece que o trabalho cria o valor
mas, quando ele vai calcular o valor na economia nacional, ele afirma
que o valor tem que ser formado por salário do trabalho, lucro do
capital e renda da terra. E a fonte subjacente do valor é subsumida,
e ao mesmo tempo o capital acumulado em ativos fixos e
matérias-primas é ignorado.
Marx
expôs o fracasso de Ricardo em explicar por que os preços das
mercadorias individuais diferem do tempo de trabalho contido neles. A
resposta de Sraffa e dos neorricardianos foi abandonar a teoria do
valor-trabalho; a solução de Marx foi mostrar que os valores das
mercadorias se transformam em preços de produção através da
equalização das taxas de lucros através da economia, pela
competição entre capitais individuais. Assim, o valor total numa
economia seria igual aos preços totais, mas os valores individuais
divergiriam dos preços individuais, dependendo do tamanho e da
composição do capital investido e da taxa média de lucro.
Shaikh
sabe disso e é muito assertivo na sua análise teórica e empírica
no livro em mostrar que a solução de Marx está certa e fornece a
melhor compreensão do movimento dos preços numa economia
capitalista. Mas ele também adota uma versão do processo de
produção sraffiano que não pode ser conciliada com Marx e, mais
importante, que falha em fornecer uma explicação lógica da
produção capitalista.
Fred
Moseley, no seu excelente novo livro, Money and Totality,
fornece uma análise da lógica de Marx em O
Capital e o seu método de transformar o valor contido nas
mercadorias em preços de produção no mercado10. Moseley aborda a
contradição da posição de Shaikh. Em obras anteriores, Shaikh
argumentou que, através de um processo “iterativo” de várias
etapas (que ele afirma que Marx também usou), o valor total pode ser
finalmente igualado aos preços totais, embora a mais-valia total em
uma economia não vá se igualar ao lucro total (ao contrário de
Marx), a menos que se adicione o lucro poupado pelas famílias capitalistas fora
do processo de produção. Então, Shaikh parte da abordagem de
Sraffa sobre o lucro como “produto excedente” e tenta efetuar a
transformação marxista dos valores em preços – sem sucesso, do
ponto de vista de Moseley.
É
interessante notar que em Capitalismo, de Shaikh, a “solução
iterativa” foi substituída por outra, baseada em outro economista
clássico , James Steuart11, e em outra “nova interpretação”
revisionista proposta pelos economistas marxistas Gerard Duménil e
Duncan Foley12 que, do ponto de vista de Moseley (e do de Andrew
Kliman13) também falha em interpretar Marx corretamente. Shaikh,
desnecessariamente, do meu ponto de vista, adota o “insight
crucial” de Steuart, de que existem “duas fontes do lucro
agregado, lucro na produção e lucro na transferência”. Isso é
claramente contraditório com a transformação de valores em lucro
de Marx, em que só existe uma fonte de lucro: a mais-valia na
produção.
Tudo
isso parece complicado – o que importa se Shaikh tenta conciliar a
teoria do valor de Marx com a de Steuart e a do neorricardiano
Sraffa? Bem, sim e não. A obra empírica prodigiosa de Shaikh em
muitos capítulos de Capitalismo parece seguir as categorias
marxistas e fornece apoio convincente para a análise econômica
marxista do capitalismo, em relação à abordagem mainstream.
Por exemplo, Shaikh fornece evidência empírica em apoio à sua
teoria de que a competição real leva a uma equalização das taxas
de lucro através dos setores, como Marx argumentou, através de
ciclos de “anos de vacas gordas e magras”14. Isso leva a uma
crítica não só da economia mainstream à la Paul
Samuelson15, segundo a qual as taxas de lucro vão subir com novas
tecnologias, como também da teoria neorricardiana de Nobuo Okishio16
e de Sraffa17.
Por
outro lado, se a teoria marxista do valor é superada pela teoria
clássica ou “corrigida” pelos neorricardianos, isso abre a porta
para uma rejeição da exploração por lucros como o motor
subjacente do capitalismo (que Shaikh sustenta, mas que Smith,
Ricardo e Sraffa, não), e compromete a teoria de Marx sobre as
crises, baseada na sua lei da queda tendencial da taxa de lucro. Na
verdade, a lei de Marx não é nem mencionada nas 759 páginas de
Capitalismo. E o termo “composição orgânica do capital”
nunca é usado para explicar como a lucratividade se movimenta no
capitalismo. Então, ficamos com uma sugestão interessante, mesmo
que ambígua, de que a a taxa de lucro empiricamente cadente pode ser
explicada “em termos neoclássicos, como uma queda da produtividade
média do capital”, em termos marxistas como se devendo à “relação
crescente entre a razão em dinheiro entre capital constante e
trabalho vivo”, e em termos sraffianos como redução da taxa
máxima de lucros (produto excedente)18. Mas qual é a explicação
certa?
Base
empírica
Além
disso, Shaikh tenta verificar empiricamente o argumento ricardiano de
que os preços das mercadorias individuais são iguais aos valores em
tempo de trabalho, mostrando que, empiricamente, eles quase o fazem;
a discrepância é de apenas 7%.19 Essa é uma observação
importante, que tem sido atacada por outros20. Tentar
reconciliar a transformação dos preços sraffiana com a de Marx de
valores em preços leva a uma tentativa empírica de dizer que os
lucros totais são "quase" iguais ao valor total (a
diferença é só de 1,6%).21 Assim, de acordo com Shaikh, “a real
diferença entre os preços de Marx e Sraffa é [só - MR] de grau de
exatidão”22.
Mesmo
assim, Shaikh está preparado para medir a lucratividade do capital à
la Marx, porque ele reconhece que ela é essencial para a compreensão
dos booms e recessões (e das ondas longas) no capitalismo. Então,
ele mede o lucro e o capital (nos Estados Unidos) com cuidado e
precisão23. Ele faz alguns ajustes importantes nos dados oficiais
(do Departamento de Comércio dos Estados Unidos), adicionando os
juros ao lucro corporativo e ampliando a definição de capital para
incluir inventários e ajustando mais refinadamente a depreciação.
O resultado é que Shaikh confirma o que muitos outros antes
(incluindo ele) mostraram - a lucratividade do capital corporativo
nos EUA está em declínio secular desde o fim da Segunda Guerra
Mundial, somente com uma estabilização moderada ou recuperação do
começo dos anos 1980, na assim chamada era neoliberal24.
De
acordo com a melhor prática moderna, como Thomas Piketty no seu
livro de título semelhante (mas com um objetivo e um método
inteiramente diferentes), Capital no Século XXI, Shaikh
fornece on-line todos os dados usados e trabalhados no livro para que
outros possam seguir e/ou replicar25. Eu testei os dados de Shaikh
para a taxa de lucro dos EUA contra os meus próprios cálculos (que
usam pressupostos diferentes, o porquê da taxa de lucro no final ser
diferente) - veja a figura 1. Shaikh usa as medidas de custo
correntes do capital fixo, contra a visão de Kliman (e minha), que
usamos os custos históricos26. Mas, de qualquer maneira, a história
é a mesma; existe um declínio secular na lucratividade dos EUA
pós-Segunda Guerra, com uma recuperação limitada a partir dos anos
1980. Então, talvez se possa argumentar que o obscuro debate sobre a
teoria do valor se torna menos importante, quando confrontado com os
dados e resultados reais.
Expondo
os neoclássicos e heterodoxos
Shaikh
aborda cada aspecto do processo capitalista e, ao fazer isso, dá
respostas marxistas (perdão, clássicas) para as confusões e falhas
da economia mainstream. Por exemplo, a sua crítica da teoria
das vantagens comparativas de Ricardo como justificativa para o
“livre comércio” que beneficiaria a todos, apesar das óbvias
evidências contrárias, é incrível. Nos EUA, os maiores perdedores
da onda atual da globalização foram os trabalhadores, como Branko
Milanovic, da City University of New York, detalha no seu novo livro,
Global Inequality27. Os empregos vão embora, quando as
economias mais eficientes roubam participação de mercado das menos
eficientes, e com a abertura de mercados (sem tarifas e restrições
especiais ou cotas).
Mas
a ideia de que o “livre comércio” é benéfico para todos os
países e para todas as classes é sagrada na economia mainstream.
No capítulo 11, Shaikh analisa em detalhes a proposição falaciosa
de que, se cada país se concentrar em produzir bens ou serviços
para os quais tem “vantagens comparativas” sobre os outros, (e,
portanto, “custos comparativos” menores), então todos se
beneficiam. O comércio entre países se equilibraria e os salários
e os empregos seriam maximizados. Shaikh mostra que isso não só é
demonstravelmente uma inverdade (os países têm grandes déficits ou
superávits comerciais por longos períodos, têm crises monetárias
recorrentes, e os trabalhadores perdem empregos para a concorrência
no exterior sem conseguir novos nos setores mais competitivos).
Shaikh também explica que não são as vantagens ou custos
comparativos que orientam o comércio, e sim os custos absolutos. Se
os custos trabalhistas chineses forem bem menores que os das empresas
americanas, então a China vai ganhar participação de mercado,
mesmo que os EUA tenham alguma assim chamada “vantagem
comparativa”. O que realmente decide é o nível de produtividade e
de crescimento de uma economia e o custo da força de trabalho: “o
livre comércio vai levar a superávits comerciais persistentes nos
países que têm capitais com custos mais baixos e déficits
comerciais persistentes nos países que têm capitais com custos
maiores”28.
Embora
Capitalismo, de Shaikh, não seja uma crítica da teoria
econômica heterodoxa, em vários lugares ele faz ataques pesados não
só à teoria neoclássica, mas também às análises heterodoxas e
marxistas que começam aceitando a visão neoclássica de “competição
perfeita” como “adequada a algum estágio anterior do
capitalismo” e “ponto de partida necessário” para “uma lista
sempre crescente de desvios do mundo real”, e então buscam
corrigi-la.
Em
particular, as críticas de Shaikh à economia pós-keynesiana,
atualmente a visão dominante da esquerda no movimento operário
internacionalmente, e da escola da Monthly Review do “capitalismo
monopolista” são persuasivas29. Ele nota que a escola da MR
considera a competição equivalente à “competição perfeita”,
assim excluindo que o capitalismo seja competitivo e nos deixando com
o capitalismo monopolista. É como se houvesse “uma era de ouro
imaginária de competição perfeita, que em algum momento se
metamorfoseou de alguma forma na era monopolista, quando é bem claro
que a competição perfeita em nenhum momento foi mais real do que é
hoje”30.
Como
Shaikh responde, o modelo da escola da MR “não é verdadeiro”31.
“A visão sobre a competição a que a escola marxista do
capitalismo monopolista adere nunca foi válida, nem no passado nem
agora.. e esse fato parece ter lhes escapado totalmente”. No mundo
imaginário da competição perfeita, os preços são estabelecidos
para as empresas; e no oposto igualmente imaginário, as empresas
estabelecem os preços”32 e existe uma “equalização turbulenta
das taxas de retorno a longo prazo das líderes de preços”33.
Assim, “ desordem é a sua ordem”34.
Semelhantemente,
a economia pós-keynesiana parece depender desde o começo de um
modelo imaginário de “competição perfeita”. Os preços são os
custos mais um mark-up e esse mark-up depende do grau
de monopolização35. Assim, os autores pós-keynesianos argumentam
que os preços administrados são um sintoma de poder de monopólio.
Shaikh contrapõe isso à competição real, em que as empresas
“sempre administram os preços”36. Então, o capitalismo não
mudou; o inimigo não é o poder de monopólio como tal, e sim o
capitalismo, que ainda é o mesmo animal.
Shaikh
argumenta que, pelo fato da teoria heterodoxa, em vez de começar
pela competição real, meramente tentar contrapor competição
perfeita e monopólio, isso a leva também a uma política
macroeconômica errada: “o que a economia neoclássica promete
através da mão invisível do mercado, a economia keynesiana e
pós-keynesiana promete através da mão visível do Estado”37.
Na
frente macroeconômica, Shaikh descarta de forma consumada o
argumento pós-keynesiano de que é a mudança na participação dos
salários e lucros que importa nas crises, e não a produção de
lucro. E ele descarta a visão pós-keynesiana de que o investimento
depende das “expectativas” dos empresários ou da expectativa de
lucros futuros, e não da lucratividade quando o investimento foi
feito, ou até em um período anterior: “o presente não é
independente do passado, assim como o futuro não é independente do
presente”38. Na verdade, Shaikh afirma que a lucratividade é “o
fundamento apropriado para a teoria de Keynes” - um argumento
forçado, do meu ponto de vista39.
Shaikh
demonstra simpatia pela teoria da “reflexividade” de George
Soros, que assume que a expectativa de lucro pode afetar o lucro
real, porque o investimento é feito esperando um certo retorno, até
que a expectativa “baixe até o chão”, de forma que a taxa de
lucro esperada “flutua de uma maneira turbulenta em torno de um
centro de gravidade construído mutuamente”40.
Shaikh
também dá o seu veredito sobre o livro rival de Thomas Piketty
sobre o capitalismo: “a medida da taxa de lucro de Piketty é
inconsistente logicamente.” Ele exclui os ganhos de capital da sua
medida do lucro, mas adiciona as propriedades residenciais no seu
capital fixo. Isso faz com que a sua taxa de lucro seja muito baixa e
“altamente suscetível às flutuações do valor de mercado dos
ativos”41. Isso é semelhante à crítica apresentada por mim e por
outros, de que a assim chamada taxa estável de retorno de Piketty na
verdade é um retorno dos ativos financeiros e não dos produtivos42.
Lucratividade
e ciclos
Para
mim, o livro de Shaikh deslancha quando ele fala da natureza do atual
estágio econômico pelo qual o capitalismo está passado. Shaikh
afirma que, na superfície, a última crise – a Grande Recessão –
pode parecer uma crise de financeirização excessiva. Mas isso falha
em identificar a verdadeira causa da crise. Os keynesianos e
pós-keynesianos argumentam que a causa da crise atual é o aumento
da desigualdade e a queda dos salários, então é necessário manter
uma participação estável dos salários e usar as políticas fiscal
e monetária para manter o pleno emprego. Mas Shaikh argumenta que
essas políticas não funcionariam porque, pelo menos nos EUA, os
pós-keynesianos entenderam errado as causas da crise. A causa real é
o movimento da lucratividade – o fator dominante no capitalismo.
A
crise foi precedida por uma longa queda da taxa de lucro. O ataque
neoliberal sobre os trabalhadores a partir dos anos 1980 suprimiu o
aumento dos salários e reduziu a participação dos salários para
estabilizar a taxa de lucro. E a enorme queda da taxa de juros nos
anos 1980 que alimentou a expansão do crédito e a massiva dívida
financeira também serviu para aumentar a taxa de lucro líquida (ou
empresarial). Então, a política fiscal keynesiana por si só pode
aumentar os empregos, mas não vai restaurar o crescimento. Para
isso, é necessário aumentar a taxa de lucro líquida – e as taxas
de juros já estão em uma baixa histórica (e até negativas).
Shaikh
enfatiza que, no capitalismo, é o lucro que orienta o crescimento.
Há flutuações cíclicas na lucratividade que se expressam nos
ciclos de negócios e de capital fixo inerentes à produção
capitalista. A história dos sistemas de mercado revela padrões
recorrentes de booms e bolhas através dos séculos, emanando
precisamente do mundo desenvolvido – as crises são normais no
capitalismo. As crises-chave no capitalismo são as “depressões”,
como a dos anos 1840, a “longa depressão” de 1873-1893, a
“grande depressão” dos anos 1930, as “crises de estagflação”
dos anos 1970, e a grande crise global agora.
Shaikh
revive o conceito de ondas longas na produção capitalista, algo
identificado pela primeira vez pelo economista russo Nikolai
Kondratieff, e que Shaikh citou pela primeira vez num artigo de
1992.43 Naquele artigo, de acordo com Shaikh, o argumento principal
de Kondratieff é que os ciclos de negócios são recorrentes e
“organicamente inerentes” ao sistema capitalista. Eles também
são inerentemente não-lineares e turbulentos: “o processo da
dinâmica real é um só. Mas ele não é linear: ele não toma a
forma de uma linha simples, ascendente. Ao contrário, o seu
movimento é irregular, com rompantes e flutuações.”
Kondratieff
acreditava que as depressões eram ligadas às ondas longas: “durante
o período de ondas longas descendentes no ciclo longo, os anos de
depressão predominam; enquanto no período de ondas ascendentes de
um ciclo longo, são os anos de crescimento que predominam”. Num
artigo que Shaikh apresentou em 2014, ele atualizou a sua análise
sobre isso, que também é desenvolvida em Capitalismo44.
Shaikh
afirma que as ondas longas de Kondratieff continuam a operar, e que
isso é claro se for medido pelo preço do dólar-ouro, a principal
medida de valor no capitalismo moderno. Ele afirma que os preços das
commodities se tornaram um indicador ruim para os ciclos de
Kondratieff no período pós-guerra do século XX, e agora olha para
o preço do ouro. Shaikh apresenta um gráfico dessas ondas, medidas
pelo preço em ouro das commodities45.
Na
minha análise, primeiro esboçada no meu livro The Great
Recession, eu descobri que o movimento das taxas de juros também
fornece um bom indicador relativo das ondas de Kondratieff, porque
ele segue o movimento dos preços de produção. As ondas de
Kondratieff também podem ser sincronizadas com as ondas de lucros,
como na tabela 1.46
Então,
a posição de Shaikh é semelhante à minha quanto às causas das
crises capitalistas, a natureza e a existência das depressões, e o
papel dos ciclos de Kondratieff e de lucros47. Não é por acidente
que nós dois fizemos previsões precoces razoáveis (e
independentes) da grande recessão de 2008-9. Shaikh fez a sua já em
2003; eu fiz em 2005, quando eu disse:
Não houve tal coincidência de ciclos desde 1991.E, dessa vez (diferente de 1991), ela será acompanhada pela queda da lucratividade dentro de uma onda descendente no ciclo de preços de Kondratieff. Está tudo no fundo do poço em 2009-2010! Isso sugere que podemos esperar uma recessão econômica muito severa, de um grau não visto desde 1980-82 ou mais48.
Do
“Capital” ao Capitalismo
Shaikh resume assim o seu tema principal “que é o de que a teoria é importante para uma compreensão da economia49. Ele diz que tomou um “caminho diferente” da economia neoclássica mainstream moderna e de alternativas heterodoxas como o pós-keynesianismo. Eles partem da competição perfeição como modelo e então chegam à realidade “jogando um punhado de areia na engrenagem” da maquinaria do modelo. Shaikh diz que parte de uma teoria da “competição real”, e a usa como base das teorias da demanda agregada e do desemprego permanente, com a lucratividade desempenhando o papel dominante. Ele apoiou a sua análise com “evidências empíricas revelantes”, para focar nos padrões reais deste “sistema turbulento e dinâmico” que é o capitalismo. Essa abordagem é louvável, mesmo que a teoria de Shaikh possa ter algumas áreas frágeis.
Capitalismo
é um livro para economistas e ativistas corajosos que querem ter uma
compreensão maior sobre os processos subjacentes do capitalismo. É
um livro monstro (mais ainda que o de Piketty), não é fácil de ler
(até O Capital de Marx é mais fácil, na minha opinião) e
pode ser muito técnico. O livro cobre muito terreno em teoria
econômica e análise empírica, talvez com repetição demais às
vezes (e existem alguns erros de edição e de dados –
compreensíveis num livro tão grande e com tantos detalhes). Mas os
leitores que encararem a tarefa vão ser recompensados com novos
insights sobre o processo capitalista e críticas inteligentes
de argumentos mainstream e heterodoxos. Se você não puder
“viajar” pelo livro todo, pelo menos leia a introdução de
abertura para abrir o seu apetite e o resumo abrangente e as
conclusões50.
Ano
que vem vai ser o 200° aniversário da principal obra de economia
política de David Ricardo, que estabeleceu os fundamentos teóricos
da tradição clássica a que Shaikh adere em Capitalismo. Mas
também vão ser 150 anos desde que Karl Marx publicou o volume um do
seu O Capital: crítica da economia política. Ano passado,
tivemos a obra de Thomas Piketty, que virou um bestseller e
substituiu Uma Breve História do Tempo de Stephen Hawking
como o livro mais comprado e menos lido de todos os tempos.51 Esse
ano, Capitalismo, de Anwar Shaikh vai ter menos elogios da
mídia, mas vai ser mais lido que o de Piketty, mesmo que O
Capital de Marx continue como a mais presciente análise do modo
de produção capitalista.
Notas
2
Shaikh, 2016, p4.
3
Fine, 2016; Fine e Dimakou, 2016. Ver também Roberts, 2016a, e a
minha crítica dos dois livros a ser publicada em International
Socialist Review, fall 2016.
5
Ver http://realecon.org/
6
Shaikh, 2016, p259.
7
Shaikh, 2016, p259.
8
Ricardo, 2004.
9
Sraffa, 1960.
10
Moseley, 2015. Ver também Roberts, 2016b.
11
Shaikh, 2016, pp221-224. Steuart também foi discutido por Marx na
parte I das Teorias da Mais-Valia—Marx, 1863.
12
Foley, 1982; Moseley, 2015.
13
Kliman, 2006.
14
Shaikh, 2016, pp301-313.
15
Samuelson, 1957.
16
Okishio, 1961.
17
Shaikh, 2016, p320, nota 36.
18
Shaikh, 2016, p251.
19
Shaikh, 2016, pp413-416.
20
See Kliman, 2006.
21
Shaikh, 2016, p433.
22
Shaikh, 2016, p437, nota 18.
23
Shaikh, 2016, pp243-256.
24
Ver Roberts, 2015a.
25
Ver http://realecon.org/data
26
Ver Roberts, 2011, e Basu, 2012.
27
Milanovic, 2016; ver também o site de Milanovic
http://glineq.blogspot.co.uk/
28
Shaikh, 2016, p514.
29
Shaikh, 2016, p355.
30
Schumpeter, 1947, p40.
31
Shaikh, 2016, p356.
32
Shaikh, 2016, p363.
33
Shaikh, 2016, p363.
34
Marx, 1847.
35
Shaikh, 2016, p360.
36
Shaikh, 2016, p363.
37
Shaikh, 2016, p235.
38
Shaikh, 2016, p594-595.
39
Shaikh, 2016, p745, e Roberts, 2013a.
40
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