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John Berger sobre o nu na arte europeia


John Berger (1926-2017) foi um crítico de arte marxista inglês. Essa tradução é do terceiro capítulo do seu livro mais conhecido, Modos de Ver, e é uma síntese entre o marxismo e a teoria feminista, aplicada na análise da arte. Eu traduzi a partir da versão em castelhano. Infelizmente, não consegui encontrar todas as imagens do original, mas tentei selecionar as imagens de forma a manter os exemplos do que ele argumenta.


Bacante recostada. Trutat, 1824-1848
De acordo com os costumes e convenções, que finalmente estão sendo questionados, mas que não estão em nada superados, a presença social de uma mulher é de um gênero diferente da do homem. A presença de um homem depende da promessa de poder que ele encarna. Se a promessa for grande e crível, a sua presença será chamativa. Se for pequena ou sem credibilidade, o homem verá que a sua presença é insignificante. O poder prometido pode ser moral, físico, temperamental, econômico, social, sexual... mas o seu objeto é sempre exterior ao homem. A presença de um homem sugere o que ele é capaz de fazer para você ou fazer a você. A sua presença pode ser "fabricada", no sentido de se fingir ser o que não se é. Mas a pretensão sempre se orienta para um poder que se exerce sobre os outros.

Por outro lado, a presença de uma mulher expressa a sua própria atitude sobre si mesma, e define o que se pode ou não fazer com ela. A sua presença se manifesta em seus gestos, voz, opiniões, expressões, roupas, ambientes escolhidos, gosto; na realidade, tudo o que ela faz é uma contribuição à sua presença. No caso da mulher, a presença é tão intrínseca à sua pessoa que os homens tendem a considerá-la quase uma emanação física, uma espécie de calor, de odor ou de auréola.

Nascer mulher tem sido nascer para ser mantida pelos homens dentro de um espaço limitado e previamente designado. A presença social da mulher se desenvolveu como resultado do seu engenho em viver submetida a essa tutela e dentro de tão limitado espaço. Mas isso só foi possível à custa de partir em dois o ser da mulher. Uma mulher deve contemplar-se  continuamente. Deve ser acompanhada constantemente pela imagem que tem de si mesma. Quando passa por uma casa ou chora pela morte de seu pai, a duras penas evita imaginar-se caminhando ou chorando. Desde sua mais tenra infância, se lhe foi ensinado a examinar-se continuamente.

E, assim, ela chega a considerar que a examinadora e a examinada que há nela são dois elementos constituintes, mas sempre distintos, da sua identidade como mulher.

Ela tem que supervisionar tudo o que é e tudo o que faz, porque o modo pelo qual aparece aos demais e, em último termo, aos homens, é de importância crucial para o que normalmente se considera o êxito na vida para ela. O seu próprio senso de ser si mesma é suplantado pelo senso de ser apreciada como tal por outrem.

Os homens examinam as mulheres antes de lidar com elas. Como consequência, o aspecto ou aparência que uma mulher tenha para um homem pode determinar o modo pelo qual este a tratará. Para adquirir certo controle sobre este processo, a mulher deve abarcá-lo e interiorizá-lo. A parte examinadora do eu de uma mulher trata a parte examinada de tal forma que demonstre aos
outros como o seu eu gostaria que lhe tratassem.  E esse tratamento exemplar de si mesma por si mesma constitui a sua presença. A presença de toda mulher regula o que é e o que não é "permissível" na sua presença. Cada uma das suas ações - seja qual for o seu propósito ou motivação direta - também é interpretada como um indicador de como gostaria de ser tratada. Se uma mulher joga um vaso no chão, isso é um exemplo de como trata as suas próprias emoções e, portanto, de como desejaria que os outros a tratassem. Se um homem faz o mesmo, a sua ação é interpretada simplesmente como uma expressão de raiva. Se uma mulher faz uma piada, isso é um exemplo de como ela trata a piadista dentro de si e, portanto, de como gostaria de ser tratada pelos outros como mulher piadista. Somente os homens podem se dar ao luxo de fazer uma piada pelo mero prazer de fazê-lo.

Todo o anterior pode ser resumido assim: os homens agem e as mulheres aparecem. Os homens olham as mulheres. As mulheres se contemplam enquanto são vistas. Isso determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres, como também a relação das mulheres consigo mesmas. O supervisor que a mulher tem dentro de si é masculino: a supervisionada é feminina. Deste modo, converte a si mesma em objeto e, particularmente, em um objeto visual, em uma visão.

Há uma categoria da pintura europeia a óleo cujo tema principal e recorrente são as mulheres. Essa categoria é o nu. Nos nus europeus encontramos alguns dos critérios e convenções que levaram a ver e julgar as mulheres como visões.

Os primeiros nus da tradição representavam Adão e Eva. Vale a pena trazer a história como está relatada no Gênesis:

E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela.
Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais.
Gênesis 3:6,7
Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-o e ­o deu a seu ma­rido, que comeu também. Os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam nus; então juntaram folhas de figueira para cobri­r-se. (...) Mas o Senhor Deus chamou o ho­mem, perguntando: "Onde está você?" E ele respondeu: "Ouvi teus passos no jardim e fiquei com medo, porque estava nu; por isso me escondi" (...) À mulher, ele declarou: "Multiplicarei grandemente o seu sofrimento na gravidez; com sofrimento você dará à luz filhos. Seu desejo será para o seu marido, e ele a dominará".

Queda e Expulsão do Paraíso. Irmãos Limburg Séc. XV
Adão e Eva, Mabuse Séc. XVI




















O que é o mais notável desta história?  Que eles tomam consciência da sua nudez porque veem um ao outro de forma diferente por terem comido a maçã. A nudez se criou na mente do espectador.

O Casal, Max Slevogt 1868-1932
Anúncio de roupas íntimas

O segundo fato surpreendente é que se culpa a mulher e ela é condenada a ser submetida ao homem. Em relação à mulher, o homem se converte em agente de Deus.

Na Idade Média, se ilustrava essa tradição muitas vezes, cena por cena, como nas histórias em quadrinhos.

No Renascimento, desapareceu a sequência narrativa e se representou unicamente o momento da vergonha. O casal veste folhas de figueira ou faz um gesto de pudor com as mãos. Mas agora a sua vergonha está mais relacionada ao espectador do que ao outro.


Posteriormente, a vergonha se converte em uma espécie de exibicionismo.

Ao secularizar-se a tradição da pintura, surgem outros temas que também oferecem a oportunidade de pintar nus. Mas, em todos eles, se conserva a implicação de que o tema (uma mulher) é consciente de ser contemplada por um espectador.

Ela não está nua como é.

Ela está nua como o espectador a vê.

Muitas vezes, esse é o tema real do quadro, como acontece no tão repetido de Susana e os Anciãos. Nós nos unimos aos Anciãos para espiar Susana enquanto se banha. Ela olha para trás, para nós, que a olhamos.

Susana e os Anciãos, Tintoretto 1518-1594
Em outra versão, obra de Tintoretto, Susana se olha em um espelho. Dessa forma, se une aos seus espectadores.






Memling 1435-1494, Vaidade

O espelho foi usado muitas vezes como símbolo da vaidade da mulher. Entretanto, há uma hipocrisia essencial nessa atitude moralizante.

Você pinta uma mulher nua porque gosta de vê-la. Assim que põe um espelho na sua mão e intitula o quadro da Vaidade, condena moralmente a mulher cuja nudez representou para o seu próprio prazer.

Mas a função real do espelho era bem outra. Era destinado para que a mulher passasse a tratar a si mesma como um espetáculo.



O Julgamento de Páris, Cranach1472—1553
O Julgamento de Páris é outro tema baseado na mesma ideia: um homem ou vários olhando mulheres nuas.

Mas agora se introduz um novo elemento: o julgamento. Páris premia com a maçã a mulher que considera mais bela. Desta maneira, a beleza se converte em objeto de competição (O Julgamento de Páris tem hoje o nome de Concurso de Beleza). Aquelas que não se julga belas não são belas. As que são, recebem o prêmio.

Nell Gwyrme, Lely 1618-1680

O prêmio é ser possuída pelo juiz, ou seja, ficar disponível para ele. Carlos II da Inglaterra encomendou secretamente o quadro a Lely. É uma imagem típica da tradição. Nominalmente, poderia ser um Vênus e Cupido. De fato, é o retrato de uma das amantes do rei, Neil Gwynne. Nos mostra ela olhando passivamente para o espectador que a contempla nua.

Entretanto, esta nudez não é expressão dos seis próprios sentimentos; é um sinal de submissão aos sentimentos ou às demandas do proprietário (o proprietário da mulher e do quadro). Quando o rei o mostrava a outras pessoas, o quadro servia para provar essa submissão e provocar a inveja dos
convidados.

Convém assinalar que em outras tradições não-europeias - a arte hindu, a arte persa, a arte africana, a arte precolombiana - a nudez nunca é supina desta forma. E, se o tema de alguma obra é a atração sexual, o mais provável é que se mostre o amor sexual ativo entre duas pessoas, a mulher tão ativa quanto o homem, as ações de um absorvendo o outro.

Começamos agora a compreender a diferença que existe entre nudez (nakedness) e nu (nudity) na tradição europeia. No seu livro The Nude (O Nu), Kenneth Clark afirma que estar nu é simplesmente estar sem roupas, enquanto o nu é uma forma de arte. Segundo ele, um nu não é o ponto de partida de um quadro, e sim um modo de ver próprio do quadro. Isso em certa medida é verdade, embora o modo de ver "um nu" não seja necessariamente exclusivo da arte: existem também fotografias de nus, poses de nu, gestos de nu. É certo que o nu está sempre convencionalizado, e que a autoridade das suas convenções procede de certa tradição artística.

O que significam essas convenções? O que significa um nu? Para responder cabalmente a estas perguntas, não basta nos referirmos à forma-arte, porque está muito claro que o nu também está relacionado com a sexualidade vivida.

Estar nu é ser si mesmo.

Ser um nu equivale a ser visto em estado de nudez por outros e, entretanto, não ser visto como um. Para que um corpo nu se torne "um nu", é preciso que seja visto como um objeto. (E vê-lo como objetivo estimula a usá-lo como objeto.) A nudez revela a si mesma. O nu se exibe.

Estar nu é estar sem disfarces.

Exibir-se nu é transformar em um disfarce a superfície da própria pele, os cabelos do próprio corpo. O nu está condenado a nunca alcançar a nudez. O nu é mais uma forma de se vestir.

Em geral, a pintura a óleo do nu europeu nunca apresenta o protagonista principal, que é o espectador que está diante do quadro, que se supõe ser do sexo masculino. Tudo é dirigido a ele. Tudo deve parecer um mero resultado da sua presença ali. As figuras se desnudam por ele. Mas ele é, por definição, um estranho que ainda conserva as suas roupas.

Consideremos a Alegoria do Tempo e do Amor, de Bronzino.

Não devemos nos preocupar agora com o complexo simbolismo que subjaz neste quadro, porque não afeta em nada o seu apelo sexual, pelo menos em primeira instância. Acima de qualquer coisa, é uma pintura da provocação sexual.

Venus, Cupido, tempo e amor, Bronzino 1503— 1572


A grande odalisca, Ingres 1780-1867
O Grão-duque de Florença enviou esse quadro como presente para o rei da França. O menino ajoelhado sobre o coxim que beija a mulher é Cupido. Ela é Vênus. Mas a atitude do seu corpo não tem nada a ver com o beijo. O seu corpo está colocado de tal forma que se exiba da melhor maneira possível diante do homem que olha o quadro. O quadro é pensado para atrair a sua sexualidade. E não tem nada a ver com a sexualidade dela. (Neste caso é em geral, em toda a tradição europeia, a convenção de não pintar os cabelos do corpo da mulher contribui para o mesmo objetivo. Os cabelos se associam com a potência sexual, com a paixão. E é preciso minimizar a paixão sexual da mulher para que o espectador acredite ter o monopólio dessa paixão. A mulheres alimentarão o desejo, não terão o próprio desejo.

Compare as expressões dessas duas mulheres: uma é a modelo de um quadro famoso de Ingres, a outra, modelo fotográfica de uma revista masculina.

Não há uma semelhança notável entre as duas expressões? São as expressões de uma mulher que responde com um encanto calculado ao homem que ela imagina que a está olhando... mesmo que não o conheça. Ela oferece a sua feminilidade para que a examine.



É verdade que, às vezes, aparece em um quadro um amante masculino.

Mas a atenção da mulher muito raramente está centrada nele. Geralmente, ela olha para outra direção ou até para fora do quadro, para aquele que considera o seu verdadeiro amante: o espectador-proprietário.

Existe uma categoria especial de quadros pornográficos privados (especialmente no século XVIII), em que aparece um casal fazendo amor. Mas, mesmo nesses casos, está claro que o espectador-proprietário expulsará com a imaginação o outro homem, ou se identificará com ele. Por outro lado, a imagem do casal nas tradições não-europeias suscita a ideia de muitos casais fazendo amor. "Temos mil mãos, mil pés e nunca estaremos sós".

Baco, Ceres e Cupido, Von Aachen 1552-1615
Quase toda a imagística europeia posterior ao Renascimento é frontal - literal ou metaforicamente - porque o protagonista sexual é o espectador-proprietário que a vê.















Les Oréades, Bouguereau 1825-1905
O absurdo dessa adulação da masculinidade alcança o seu apogeu na arte acadêmica pública do século XIX. Estadistas e homens de negócios discutiam debaixo de quadros como esse. Quando algum tinha a sensação de ter sido superado em astúcia pelo outro, olhava para cima em busca e consolo. O que via o recordava de que era um homem.













Dânae, Rembrandt 1606-1669
Na tradição europeia da pintura a óleo existem uns poucos casos de nus excepcionais aos quais se torna difícil aplicar o que estamos falando. Na realidade, já não são nus, porque rompem com as normas da forma artística. São quadros de mulheres amadas, mais ou menos nuas. Entre as centenas de milhares de nus que constituem a tradição, talvez haja umas cem exceções desse tipo. Em todos os casos, a visão pessoal do pintor sobre aquela mulher concreta que está pintando é tão intensa que ele não faz nenhuma concessão ao espectador. A visão do pintor vincula a mulher ao artista com tal força que se tornam tão inseparáveis como casais esculpidos em pedra. O espectador presencia a sua relação - e nada mais: se vê obrigado a reconhecer-se como o estranho que é. Não pode se enganar, acreditando que ela tenha se despido para ele. Não pode transformá-la em "um nu". O pintor a representou de forma que a vontade e as intenções da mulher façam parte da própria estrutura da imagem, da própria expressão do seu corpo e do seu rosto.

O típico e o excepcional dentro da tradição podem ser definidos pela simples antinomia nudez/nu, mas o problema do nu pictórico não é tão simples como pode parecer à primeira vista.

Qual é a função sexual da nudez, na realidade? As roupas atrapalham o contato e o movimento. Mas pode parecer que a nudez tem um valor visual, positivo e próprio: queremos ver o outro nu, o outro nos entrega a visão de si mesmo e nós nos apoderamos dela, algumas vezes sem nos importar se é a primeira vez ou a centésima. O que significa para nós essa visão do outro, como afeta o nosso desejo nesse instante de revelação total?

A sua nudez age como confirmação, e provoca uma intensa sensação de alívio. Ela é uma mulher como qualquer outra, ou um homem como qualquer outro, nos sentimos esmagados pela maravilhosa simplicidade do mecanismo sexual familiar.

Naturalmente, não esperamos conscientemente que isso seja diferente: os desejos homossexuais inconscientes (ou os desejos heterossexuais inconscientes se o casal é homossexual) podem levar cada um a esperar por algo diferente. Mas o "alívio" pode ser explicado sem a necessidade de recorrer ao inconsciente.

Não esperamos que seja diferente, mas a urgência e a complexidade dos nossos sentimentos engendram uma sensação de unicidade que se dissipa ao vermos o outro tal qual é. As semelhanças com os outros membros do seu sexo superam em muito as diferenças. E nessa revelação se baseia o anonimato cálido e amistoso - oposto ao frio e impessoal - da nudez.

Em outras palavras: quando se percebe a nudez pela primeira vez, entra em jogo um elemento de banalidade, elemento que existe só porque precisamos dele.

Até esse instante, o outro era mais ou menos misterioso. O protocolo do pudor não é algo meramente puritano ou sentimental: é razoável para reconhecermos uma perda do mistério. E a explicação dessa perda pode ser principalmente visual. O local da percepção se desloca dos olhos, boca, ombros e mãos - todos capazes de tais sutilezas de expressão que a personalidade que expressam é múltipla - para as partes sexuais, cuja formação é um processo extremamente imperativo mas simples. O outro se reduz ou eleva - como cada um preferir - à sua categoria sexual primária: homem ou mulher. O nosso alívio é o alívio de encontrar uma realidade inquestionável a cujas demandas diretas deve agora se render a nossa consciência anterior, altamente complexa. 

Precisamos dessa banalidade que encontramos no primeiro instante do despir-se porque ela nos devolve à realidade. Mas há aí algo mais. Essa realidade, ao prometer o mecanismo familiar, proverbial, do sexo, oferece, ao mesmo tempo, a possibilidade da subjetividade compartilhada do sexo.

A perda do mistério se produz simultaneamente ao oferecimento de meios para se criar um mistério. A sequência é subjetivo-objetivo-subjetivo em poder dos dois.

Agora compreendemos a dificuldade de criar uma imagem estática da nudez sexual. Na experiência sexual vivida, a nudez é um processo, mais que um estado. Se um instante desse processo é isolado, a sua imagem parecerá banal, e a sua banalidade, em vez de servir de ponte entre dois estados intensamente imaginativos, resultará fria. Essa é uma das razões das fotos de nudez expressivas serem mais raras ainda que os quadros. A solução mais fácil para um fotógrafo é transformar a fotografia em "um nu" que, ao generalizar tanto o espetáculo como o espectador, e reduzir a sexualidade a algo não específico, transforma o desejo em fantasia.
Helena Fourment com uma pele negra. Rubens.

Examinemos agora uma imagem pintada de nudez excepcional. É um quadro em que Rubens pintou a sua segunda esposa, uma jovem que de casou com ele quando ele já era relativamente velho. A vemos se virando, envolta numa pele que lhe cai dos ombros. É evidente que não permanecerá assim nem mais um segundo. Em um sentido superficial, a imagem é tão instantânea como a de uma fotografia. Mas, em um sentido mais profundo, o quadro "contém" um certo tempo e a sua experiência. É fácil imaginar que, um momento antes de jogar a pele sobre os ombros, ela estava completamente nua. O quadro transcende as etapas sucessivas que se deram antes e depois do momento do despir-se total. Ela pode pertencer a qualquer uma ou a todas, simultaneamente.




O seu corpo está na nossa frente, mas não como visão imediata e sim como experiência... a experiência do pintor. Por que? Há razões superficiais e anedóticas: os seus cabelos desgrenhados, a expressão de seus olhos - dirigidos a ele - a ternura com que foi pintada, a suscetibilidade exagerada da sua pele. Mas a razão profunda é de índole formal. O seu aspecto foi literalmente refundido pela subjetividade do pintor. A parte superior do seu corpo nunca encontraria as pernas sob a pele que ela usa. Existe um deslocamento literal de cerca de vinte e três centímetros: as suas coxas teriam que estar pelo menos vinte e três centímetros à esquerda para se juntarem ao seu quadril.


Provavelmente, Rubens não o fez de propósito, talvez o espectador não o perceba conscientemente. O detalhe não tem importância em si mesmo. Mas o que importa é o que ele permite. Permite que o corpo se torne impossivelmente dinâmico. A sua coerência não está nele, e sim na experiência do pintor. Ou, mais exatamente, permite que a metade superior e a inferior do corpo girem em separado, e em direções contrárias, ao redor do centro sexual, que está oculto: o torso gira à direita, as pernas, à esquerda. Ao mesmo tempo, esse centro sexual oculto está unido por meio do casaco de peles escuro a toda a escuridão circundante do quadro, de modo que ela está girando ao redor e dentro da escuridão, que se tornou uma metáfora do seu sexo.

Além da necessidade de transcender o instante único e admitir a subjetividade, existe, como já vimos, um terceiro elemento que é essencial para qualquer grande imagem sexual da nudez. Esse elemento é a banalidade, que deve ser franca, mas não fria. Aqui está precisamente a diferença entre o voyeur e o amante. E essa banalidade está presente na pintura compulsiva de Rubens da brancura gorda da carne de Hélène Fourment que rompe continuamente todos os convencionalismos ideais sobre as formas, e oferece-lhe continuamente a promessa da sua extraordinária particularidade.

Na pintura europeia a óleo, o nu é apresentado usualmente como uma manifestação admirável do espírito humanista europeu. Este espírito era inseparável do individualismo. E, sem o desenvolvimento do individualismo altamente consciente, nunca se teriam pintado essas exceções da tradição (imagens extremamente pessoais da nudez). Entretanto, a tradição comportava uma contradição que não poderia resolver sozinha. Alguns artistas individuais reconheceram isto intuitivamente, e resolveram a contradição ao seu modo, mas as suas soluções nunca poderiam se tornar parte dos modos culturais da tradição.

Podemos definir esta contradição de forma muito simples. Por um lado, o individualismo do artista, do pensador, do mecenas, do proprietário; do outro, a pessoa objeto das suas atividades - a mulher - tratada como uma coisa ou uma abstração.

Dürer acreditava que o nu ideal devia ser construído tomando o rosto de um corpo, os seios de outro, as pernas de um terceiro, os ombros de um quarto, as mãos de um quinto etc.

O resultado glorificaria o Homem. Mas essa prática pressupunha uma indiferença notável em relação a quem fosse uma pessoa.

Na forma-arte do nu europeu, os pintores e os espectadores-proprietários eram geralmente homens, e as pessoas tratadas como objetos, geralmente mulheres. Essa relação desigual está tão profundamente arraigada na nossa cultura que ainda estrutura a consciência de muitas mulheres. Elas fazem consigo o que os homens fazem com elas. Examinam, como os homens, a sua própria feminilidade.

Vênus de Urbino. Ticiano. 1487-1576.
Na arte moderna, o nu perdeu importância. Os próprios artistas começaram a questioná-lo. Neste, como em tantos outros aspectos, Manet representou um ponto de ruptura. Se compararmos a sua Olimpia com o original de Ticiano, veremos uma mulher, que representa o papel tradicional, começando a questionar esse papel, com um certo tom de desafio.

O ideal estava destruído. Mas havia pouca coisa para substituí-lo, a não ser o "realismo" da prostituta, que se tornou a quintessência da mulher nos primeiros quadros vanguardistas do século XX (Toulouse-Lautrec, Picasso, Rouault, expressionismo alemão etc).
Olympia. Manet.1832-1883 
 A tradição continuou vigente na pintura acadêmica.

As atitudes e valores que informam essa tradição se expressão hoje através de outros meios de difusão mais amplos: publicidade, imprensa, televisão.

Mas o modo essencial de ver as mulheres, o uso essencial para que se destinavam essas imagens, não mudou. As mulheres são representadas de um modo completamente diferente dos homens, e não porque o feminino seja diferente do masculino, e sim porque sempre se supõe que o espectador "ideal" é homem e que a imagem da mulher é destinada a lhe dar prazer. Se você tiver alguma dúvida de que seja assim, faça a seguinte experiência. Escolha nesse livro a imagem de um nu tradicional. Transforme a mulher em homem, seja mentalmente, seja desenhando por cima da ilustração. Observe então a violência que essa transformação provoca. Violento não para a imagem, e sim para as ideias preconcebidas de quem a contempla.

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