No
centenário da revolução russa, existe toda uma pressão da mídia
burguesa para transformar a data em uma marco do fracasso do
socialismo. Por outro lado, nas comemorações que estão sendo
feitas na esquerda, a versão absolutamente dominante é a celebração
quase acrítica da política bolchevique.
Entre
as várias correntes que disputaram o processo da revolução russa,
uma das menos conhecidas é a dos mencheviques internacionalistas.
Confundidos com os mencheviques defensistas que apoiaram a “sua”
burguesia na Primeira Guerra, muitas de suas críticas entretanto
foram prescientes sobre a burocratização nascente e os ritmos da
transição para o socialismo. Aqui, será feito uma pequena
apresentação dessa corrente, e a tradução de trechos de obras
mencheviques, sobre as principais divergências com os bolcheviques.
O
menchevismo
No
Congresso de 1903 do Partido Operário Socialdemocrata Russo (POSDR),
existe uma divisão na discussão sobre os estatutos. Os majoritários
(“bolcheviques”, em russo) defendem que só deve ser membro do
partido quem participar de alguma das suas instâncias, enquantos os
minoritários (“mencheviques”) defendem que, para ser membro,
basta se orientar pela linha política do partido. Por trás da
divisão estão as concepções dos bolcheviques, que consideram que
o czarismo exige a construção de uma organização de quadros
militantes altamente comprometidos, e dos mencheviques, que defendem
um partido mais amplo, para ser mais próximo da classe operária.
Essa
divergência, a princípio somente organizativa, se torna uma
divergência política a partir da revolução de 1905. As duas alas
do partido caracterizavam que as condições da Rússia, com uma
economia predominantemente latifundiária, ainda precisava passar por
uma revolução burguesa, antes que a classe operária tivesse força
social e organização suficientes para estabelecer a ditadura do
proletariado.
Diante
disso, os mencheviques consideravam que, durante a revolução
burguesa, os trabalhadores deveriam se manter como a ala extrema da
oposição, e lutar para pressionar os setores da burguesia que
chegassem ao poder para que eles avançassem o máximo possível na
revolução (destruindo o latifúndio, estabelecendo a democracia
mais ampla etc).
Os
bolcheviques interpretavam a situação mais dialeticamente evitando
igual revolução burguesa e ditadura da burguesia. Na sua obra Duas
Táticas da Socialdemocracia na Revolução Democrática, o
dirigente bolchevique Lênin defendia que a revolução democrática
fosse feita através da aliança dos operários com os camponeses,
que formavam a grande maioria da população russa, e que a “ditadura
democrática do proletariado e do campesinato” surgida dessa
revolução poderia até mesmo avançar até o socialismo, se a
revolução russa desencadeasse revoluções socialistas na Europa
ocidental.
Depois
da revolução de 1905, houve várias tentativas de reunificar o
partido, mas a partir de 1912, na prática, as duas alas passaram a
funcionar como partidos separados. A Primeira Guerra Mundial
aprofundou a divisão, porque a maioria dos mencheviques passou a
defender a vitória da Rússia na guerra contra a Alemanha, enquanto
os bolcheviques mantiveram a resolução de 1912 da Segunda
Internacional, contra a guerra imperialista e defendendo a
transformação da guerra em revolução.
Os
mencheviques internacionalistas foram a minoria do partido
menchevique que foi contra a defesa da Rússia (a maioria passou a
ser chamada de mencheviques defensistas), e defendiam que as
circunstâncias da guerra criavam as condições para a transição
para o socialismo.
A
revolução de fevereiro e a formação dos governos provisórios
aumentam a crise do partido menchevique, porque a maioria do partido,
sob direção de Tsereteli e Dan, rompendo com as suas resoluções
desde a revolução de 1905, passa a defender o governo Kerensky.
Mais
à direita ainda, estava a corrente Unidade, de Georgi Plekhanov, o
fundador do marxismo russo, que foi quem formulou a tese de que seria
impossível a revolução socialista na Rússia, porque antes seria
necessária uma etapa longa de desenvolvimento do capitalismo, se
colocando assim contra a revolução de outubro. Essa corrente rompeu
com o partido menchevique em 1917.
Os
mencheviques internacionalistas e, em especial o seu dirigente Julius
Martov (que volta do exílio para a Rússia em maio), tentam aprovar
a ruptura com o governo dentro do partido e, a partir de julho,
defendem a formação de um governo de unidade entre as organizações
socialistas russa e a saída da guerra. Eles consideram a insurreição
de outubro uma tentativa dos bolcheviques tomarem o poder para si,
com o apoio de uma minoria da classe operária mas, diferente do mito
difundido na esquerda, os mencheviques não aderiram ao Exército
Branco. Pelo contrário, eles tentam intervir nos sovietes,
defendendo uma política de ampliação das liberdades democráticas
e, a partir de 1919, defendem uma política de abertura para os
pequenos produtores rurais e o pequeno capital que prenuncia a NEP.
Na
Geórgia, os mencheviques chegaram até mesmo ao poder, formando a
República Democrática da Geórgia, que manteve uma democracia
parlamentar, com o primeiro-ministro menchevique Noe Zhordania, e
adotou algumas medidas socialdemocratas (formação de cooperativas,
reforma agrária etc), antes de ser derrubado pelos bolcheviques em
1921. Karl Kautsky, o dirigente histórico da socialdemocracia alemã
visitou a Geórgia em 1920, e relatou a sua experiência no livro
Geórgia – Uma República camponesa socialdemocrata.
A
crítica menchevique internacionalista
Martov
saiu da Rússia em outubro de 1920, um período de crescente
perseguição às outras correntes socialistas pelos bolcheviques (os
mencheviques foram colocados na ilegalidade em março de 1921), mas
continuou a escrever e a participar Segunda Internacional, que foi
refundada em 1920. A sua elaboração é uma crítica à revolução
russa a partir de um ponto de vista socialista e democrático.
A
perseguição leva ao exílio uma quantidade proporcionalmente maior
de mencheviques defensistas,. Isso, junto com a radicalização
provocada pela própria revolução, dá um peso cada vez maior aos
mencheviques internacionalistas dentro do partido.
A
semelhança mais marcante entre os mencheviques internacionalistas e
os bolcheviques é a concepção sobre o curso histórico do
capitalismo. As duas correntes entendiam que a guerra mundial
abria o período de transição para o socialismo, e que a classe
operária no poder deveria começar essa transição.
Porém,
a partir daí começam as diferenças de análise do processo. Para
os mencheviques internacionalistas, os bolcheviques estavam tentando
impor o ritmo do processo revolucionário russo a todos os outros
socialistas do mundo (inclusive formando a Internacional Comunista em
1919).
Mais
importante ainda, eles estariam usando o argumento de que os sovietes
seriam uma forma superior de democracia para dizer que a única forma
de exercer a ditadura do proletariado seria através dos sovietes, e
que, por isso, as liberdades democráticas estariam “superadas”
por serem “burguesas”.
Diante
da limitação da democracia e da ditadura de partido dos
bolcheviques, os mencheviques internacionalistas reconhecem o caráter
de classe (proletário) do regime, mas defendem a sua ampliação
para incorporar mais setores da classe trabalhadora e das demais
classes dominadas, transformando a ditadura em uma democracia
socialista.
Nas
teses sobre A Revolução Social Mundial e os Objetivos da
Socialdemocracia, aprovadas na Conferência Panrrussa do POSDR
(Menchhevique), escritas por Martov em 1920, que são a síntese mais
importante da teoria menchevique, formuladas sob hegemonia dos
mencheviques internacionalistas, eles fazem assim a crítica aos
bolcheviques:
A
revolução social universal - ou seja, a reconstrução da sociedade
sobre uma nova base social e econômica por uma nova classe que tomou
o poder do Estado em suas próprias mãos, não pode ser encarada
como uma espécie de evento histórico ocorrido durante um curto
período de uma alguns meses ou alguns anos, e varrendo, como uma
catástrofe, uma forma de vida econômica para substituí-la por uma
absolutamente diferente. Essa ideia da Revolução Social contradiz
completamente a própria teoria do socialismo científico. A
Revolução Social é um processo complicado e contínuo de
socialização gradual dos fatores econômicos de um país e
colocando, no lugar das formas de produção capitalistas e
semicapitalistas, alguma forma superior de coletivismo, o que
garantiria o desenvolvimento mais completo das forças produtivas.
Nem as diferentes fases desta Revolução nem a rapidez de seu
progresso seriam as mesmas em diferentes países, porque todos os
países diferem muito no grau de seu desenvolvimento capitalista, na
correlação com as forças públicas da cultura geral da população,
e em muitos outros detalhes essenciais. Nem a transição da crise
econômica causada pela guerra às mudanças revolucionárias que são
os traços característicos da Revolução Social deve ser
considerada como um tipo de processo uniforme em todos os países
incluídos no processo histórico da Revolução. Portanto, a fórmula
usual de que "a guerra imperialista se torna diretamente guerra
civil", aplicável a todos os países, deve ser rejeitada. Pelo
contrário, a concepção científica da Revolução Social permite
aos países mais avançados economicamente um certo período de
crescimento econômico após a desorganização causada pela guerra.
Só seria depois deste boom que as incoerências fundamentais
internas, que levam à Revolução Social, atingiriam o clímax
necessário e a guerra civil também brotaria nesses países (...)
A
ideia do “sistema soviético" de democracia e dos esforços
para garantir a Revolução Social por meio da ditadura com base
neste sistema foi alimentada entre as classes trabalhadoras de
diferentes países por tradições sindicalistas tentando preencher o
período transitório do capitalismo para o socialismo. Todas as
formas de organização do Estado por sindicatos de trabalhadores nos
processos de produção só podem ser possíveis em uma sociedade
socialista bem organizada e há muito estabelecida. A preferência
pelo "sistema soviético" é o resultado natural de um
grande desapontamento com as instituições democráticas, uma
decepção causada em parte pelo comportamento estranho de muitos
partidos socialistas durante a guerra e, em parte, pelo miserável
papel desempenhado pelas instituições democráticas nascidas
durante a Revolução. A miserável posição dos órgãos
democráticos de poder, as Assembleias Constituintes reacionárias e
impotentes e outras instituições democráticas, e as possibilidades
de as forças contrárias revolucionárias fazerem uso da agitação
a favor dessas instituições em sua luta contra as aspirações do
proletariado para libertação social, todos parecem ser resultados
da fraqueza interior do proletariado e do fato de que suas diferenças
internas ainda estão vivas e impedem a formação de uma frente
única contra as classes capitalistas pela atração pelo
proletariado de toda a massa das classes trabalhadoras. Portanto,
quando alguns dos grupos revolucionários do proletariado tentam
estabelecer a ditadura de uma minoria sob a bandeira da "ditadura
baseada no sistema soviético", não pode ser considerada outra
coisa senão a tentativa de uma parte do proletariado de resolver por
seus próprios esforços o problema para o qual o proletariado como
um todo no estado atual do processo revolucionário não está
preparado (...)
Assim,
se no processo da luta revolucionária, o poder do Estado cai nas
mãos de uma minoria ativa da classe trabalhadora, e o último,
incapaz de gerir as inconsistências objetivas incontornáveis de sua
própria posição, vagueia entre uma utopia econômica e o
terrorismo político, a socialdemocracia marxista revolucionária
apoia essa minoria em sua disputa contra as forças da
contrarrevolução, em seus esforços para manter o poder do Estado
nas mãos da classe trabalhadora e para promover a organização
socialista de produção; mas, ao mesmo tempo, a social-democracia
tenta de todas as formas possíveis, através da mudança da política
econômica de acordo com o nível de desenvolvimento social do país,
pela democratização das formas de poder do Estado criadas pela
Revolução e pela abolição dos métodos de governo terroristas,
salvar o proletariado do país dado e o movimento operário
internacional da derrota severa, e assegurar o desenvolvimento da
ditadura revolucionária desta minoria com sua utopia e ditadura numa
verdadeira maioria de trabalhadores.
Conclusão
Tanto
os bolcheviques como os mencheviques internacionalistas acreditavam
que a Primeira Guerra tinha aberto o período da revolução mundial
para a transformação socialista da sociedade. Diante do que
consideravam como uma tomada do poder “sectária” por parte dos
bolcheviques, os mencheviques tentaram manter uma linha de classe,
fazendo as críticas que consideravam necessárias sobre a questão
democrática na revolução. Essa crítica é feita pela direita
liberal de uma forma que perde de vista o aspecto de classe
envolvido, colocando o processo da revolução russa como se fosse a
formação de mais uma ditadura, dessa vez de esquerda. O estudo das
posições dos mencheviques internacionalistas nos ajuda a pensar na
questão da democracia em um processo revolucionário a partir de um
ponto de vista socialista, e por isso é uma contribuição
importante ao acervo das análises marxistas sobre as revoluções em
geral, e a russa em particular.
Bibliografia
GETZLER,
Israel. Martov e os mencheviques antes e depois da revolução. In:
HOBSBAWN, Eric (org.) História do Marxismo V: o marxismo na época
da Terceira Internacional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985
MARTOV,
Julius. The World’s Social Revolution and the Aims of
Social-Democracy. Disponível em
https://www.marxists.org/archive/martov/1920/07/thesis.htm
acesso em 11/09/2007
O’
BRIEN, James. What is to be done: The Menshevik Programme July 1919.
Disponível em
https://spiritofcontradiction.eu/bronterre/2012/08/11/what-is-to-be-done-the-menshivik-programme-july-1919
acesso em 16/09/2017
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